Resumo:
O
modesto artigo explica a origem do homem cordial, seu significado e, a
gradativa libertação de tamanha cordialidade. O que reforça a existência da
fraqueza institucional e do pouco respeito às leis, ao Estado e à ordem
jurídica vigente.
Palavras-chaves:
Homem cordial. Cordialidade. História do Brasil. Sociologia.
Filosofia. Formação do Brasil.
Filosofia. Formação do Brasil.
Autoras:
Gisele
Leite
Denise
Heuseler
No
fatídico capítulo quinto (quinto dos infernos[1], deve ser a referência)
intitulado "O homem cordial", na obra chamada “Raízes do Brasil” que
integrava a coleção Documentos Brasileiros, de autoria do notável Sérgio
Buarque de Holanda, que parafraseava a expressão de Ribeiro Couto[2] e foi endereçada ao
escritor mexicano Alfonso Reyes.
O
homem cordial se caracterizava como sendo um dos efeitos decisivos da
supremacia inconteste e absorvente do ninho familiar, pois as relações que se travam
na vida doméstica, sempre forneceram o modelo vigente e obrigatório para
qualquer composição social entre os brasileiros.
A
expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza. Cordial vem do
latim cordis, cujo significado remoto é cordas, sendo relativo ao
coração. A explicação etimológica serve para ressaltar sua dubiedade e
simultaneamente, àquilo caracteriza, segundo a sua tese, o temperamento do
homem brasileiro. Pois diferentemente dos povos asiáticos, em geral, entre os
quais predomina a polidez, como sendo parte integrante do procedimento
civilizacional, no Brasil tal polidez permanece somente na superfície.
In
litteris, Buarque esclarece: “Ela pode iludir na aparência – e isso
se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie
de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no 'homem cordial': é
a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso, a polidez é, de
algum modo, organização da defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior,
epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de
resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas
suas sensibilidades e suas emoções.”
Na
verdade, a cordialidade tinha o papel de sublinhar com destaque a rígida
separação, em nossa sociedade, entre o público e o privado[3].
O historiador
não deixava dúvidas sobre sua pejorativa consequência. Pois armado da máscara
de cordialidade, o indivíduo[4] consegue manter sua
supremacia ante o social. Fundada nas relações familiares de que derivava, a
cordialidade se estendia até a área do público, cuja lógica, que antes deveria
ser o interesse público, era com isso sufocada.
A
distinção se tornará mais efetiva a partir da terceira edição de Raízes do Brasil,
quando ao texto sensivelmente modificado[5] corresponderá ao
esclarecimento decisivo sobre a questão da cordialidade.
Importante
esse esclarecimento desde que Cassiano Ricardo[6] iniciara seu
desentendimento, tornando-a como sinônimo da nossa bondade original. Contrapôs,
Sérgio Buarque que reiterou em nota a origem a Ribeiro Couto, acrescentava
ainda a passagem de “O Conceito do Político”, que Carl Schmitt[7] publicara em 1933.
Diferencia-se a inimizade, pertencente à ordem do privado, assim como a
hostilidade, pertinente a ordem do público[8].
Cassiano
Ricardo Leite (1894-1974) foi jornalista, poeta e ensaísta brasileiro. Foi
representante do modernismo de tendências nacionalistas e esteve ligado aos
grupos Verde-Amarelo e da Anta, foi o fundador do grupo da Bandeira, reação de
cunho social-democrata a estes grupos. Tendo, em sua obra se transformado até o
final, evoluindo formalmente com as novas tendências dos anos de 1950 e tendo
participação no movimento da poesia concreta.
E, no
texto revisto espancando todas as dúvidas, Sérgio Buarque frisou que nossas
raízes familiares comprometiam a formação consequente de uma ordem pública
entre nós, pois seus agentes, no exercício de seus cargos, agem como se a
população fosse parte do círculo de seus protegidos.
O
termo “cordial” em vez de restringir-se a estrita acepção inicial, a oposição
entre público e privado, a hostilidade versus a inimizade como derivadas
da importância primordial da instituição familiar, passa então, a ter a
oposição entre público e privado, significava que nossa política, sob o manto
de afabilidade, acobertava interesses privados. E, mesmo contemporaneamente,
vigora essa acepção.
Apesar
da delação, da tortura, do desaparecimento dos adversários, dos assassinatos
diários em blitz policial, e ainda, todas as atrocidades praticadas habitualmente
durante o Estado Novo[9], como se poderia imaginar
a indiferença e a progressiva hostilidade da população pelo clima intenso de
terror e de medo em face da velha cordialidade do homem brasileiro.
O
privado doravante se identifica mais com instituições industriais, ainda que de
origem familiar. Seria uma espécie de cordialidade industrial. Oriunda de
instituições que, por sua exímia capacidade de difusão pública, possuem a
possibilidade de forjar uma opinião pública.
O
homem cordial precisa expandir seu ser na vida social, precisa estender-se até
a coletividade, que não suporta o peso denso da individualidade, precisa viver
nos outros. Ter empatia. Tal necessidade aponta para a necessidade de
apropriação efetiva do outro, principalmente através de nossas cotidianas
expressões linguísticas.
Aliás,
destacou Sérgio Buarque o uso do sufixo típico do diminutivo, o famoso - inho
-, colocado em vocábulos como senhorzinho, sinhazinha que revela a grande
vontade de se aproximar do que é distante do nível do afeto.
O
homem cordial[10],
é, portanto, um artifício, uma armadilha psicológica e comportamental inserida
em nossa formação enquanto povo. É por essa razão, que ressaltou o historiador
a contribuição brasileira para a civilização será o homem cordial.
A
identidade brasileira ainda um enigma sendo pensada a partir de dualidades.
Gerando-se, naturalmente, o trabalhador e o aventureiro, por exemplo, uma
dicotomia salientada por Leenhardt[11], a qual o aventureiro
ibérico que não sabia onde aportava. Antônio Cândido em sua introdução clássica
aponta que o historiador trabalha com dualidades, com pares, como trabalho e
aventura; método e capricho. rural e urbano; burocracia e caudilhismo, norma
impessoal e impulso afetivo.
Nas
décadas de 1920 e 1930 foram de intensa atividade cultural e intelectual no
Brasil e, segundo muitos historiadores, foi quando o Brasil fora redescoberto,
ou seja, surgiram novas formas de interpretar a nossa identidade e
singularidade ante às outras civilizações foram desenvolvidas, tanto na seara
da literatura, da história e das alcunhadas "ciências sociais".
A
Semana de Arte Moderna de 1922 e o Movimento Regionalista de Pernambuco foi um
dos principais marcos do esforço interpretativo sobre o que vem a ser Brasil.
E, nesse momento, a obra "Raízes do Brasil", onde foi desenvolvido o
fundamental conceito de “homem cordial”. A obra fora publicada em 1936 pela
Editora José Olympio, sendo obra que visou investigar o que baseia a história
do Brasil, de seu povo e de suas instituições mais peculiares, tais como a
família patriarcal, entre outros aspectos tão marcantes da sociedade brasileira.
Tais
temas também interessaram outro intelectual relevante pernambucano Gilberto
Freyre, cujas obras “Casa Grande e Senzala” (1933) e “Sobrados e Mucambos[12]” (1936) são cruciais para
se refletir e analisar a formação do Brasil.
Em
verdade a composição da obra de Sérgio Buarque de Holanda nasceram em 1930, na
época que teria sido enviado como correspondente brasileiros dos Diários
Associados para Polônia, Rússia e Alemanha.
Em
tais dualidades fica nítida a distinção efetuada por Max Weber entre os
diferentes tipos de legitimação, com o trabalho, o método, o urbano, a
burocracia e a norma impessoal, situando-se no campo dominado pelo chamado
domínio em virtude da legalidade, em virtude da fé na validade do estatuto
legal e da competência funcional, baseada em regras racionalmente criadas e com
os polos opostos de cada parte situando-se
no terreno dos tipos de autoridade tradicional e carismática.
São
esses tipos de autoridade segundo Sérgio Buarque, apesar de não mencionar a
tipologia weberiana que têm predominado no Brasil e, é a utilização dessa
dualidade e a constatação desse predomínio que irão nortear o pensamento do
historiador.
A
maioria das histórias nacionais pode ser dito que são cruéis e a de nosso país
naturalmente não é uma exceção. E, pretender que o tenha sido - a do Brasil, em
menor ou maior grau do que a dos outros povos já é matéria dependente de
critérios de mensuração e naturalmente de termos de comparação, que até o
momento ainda não se descobriram.
O
homem cordial é definido como protótipo do não-cidadão[13], pelo fato de o seu
perfil não se adequar à esfera pública, simbolizando, ainda, uma sociedade que
prefere obedecer a assumir responsabilidades. E, não mais se adequa à
modernidade, devido a uma característica ressaltada por Sérgio Buarque, que
menciona o horror às distâncias que parece constituir, ao mesmo até agora, o
traço mais específico do caráter brasileiro.
Enfim,
o romantismo ganho no Brasil um personalismo inato. E, se adaptou tão bem ao
nosso gênio nacional, ao ponto que se pode afirmar que nunca a nossa poesia
pareceu tão legitimamente nossa, como sob a sua influência. E, deve-se ao fato
de persistir, aqui como em Portugal, o velho prestígio das formas simples e
espontâneas, dos sentimentos pessoais, a despeito das contorções e disciplinas
seculares do cultismo e do classicismo.
Enfim,
a continuidade que demos à tradição ibérica gera um tempo, que ao invés de se
renovar, conduz a reafirmação de nossos traços de significado, e tal continuidade
se revela na conservação do passado para não aniquilar nosso perfil
identitário.
A
origem do homem cordial cunhou aspectos peculiares à história brasileira.
Aliás, Sérgio Buarque, definiu como o caráter epidérmico das rebeliões que
antecederam e mesmo as que sucederam a Independência, o qual possui, na
perspectiva, as origens de nossas políticas identitárias. Não é, em resumo, o
mesmo paternalismo, de raízes coloniais[14] e barrocas que forma,
ainda hoje, o núcleo de quase toda atividade política no Brasil.
A
repulsa firme e reiterada de todas as modalidades de racionalização, e, por
conseguinte, da despersonalização, tem sido, até hoje, um dos traços constantes
dos povos de raízes ibéricas. E, sublinha, ainda, alguns dos traços básicos do ethos
econômico de tais populações.
Sérgio
Buarque tenta identificar as raízes do Brasil, mas é uma tentativa que se
configura como contraditória, na medida em que o brasileiro é caracterizado
como portador de uma identidade sem raízes; somos ainda hoje uns desterrados em
nossa terra.
E, tal desterro se relaciona ao que ele
definiu como a predominância do caráter de exploração comercial da colonização
portuguesa, mais preocupada em explorar a terra, ainda que de forma predatória,
do que em estabelecer-se nesta de forma consistente.
Foi a
cordialidade lusitana presente na raiz da tradição ibérica na qual fomos
criados, do iberismo de fundamental relevância que gerou a plasticidade da
colonização portuguesa, tão referida por Gilberto Freyre.
Permitiu
ao português misturar-se sem maiores restrições ao negro e ao índio, criando
uma cultura assim ambivalente, originalmente branca e europeia, mas vinculada a
tradições africanas e indígenas[15]. E, conclui-se que este
dilema está presente em nossos impasses nacionalistas, continuam em propostas
literárias, políticas ou sociais.
Diferentemente
do que ocorreu na colonização inglesa, tal plasticidade que tanto caracterizou
o processo colonial português não ocorreu.
O
espírito empreendedor e empresarial, a capacidade de trabalho e a coesão social
são as características que faltam a esse processo e veio a definir a
colonização britânica como de ocupação.
o colonizador de origem inglesa era movido pelo "afã de
construir", enquanto o português deixou-se atrair "pela esperança de
achar em suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundana e beatitude
celeste, que a eles se ofereceriam sem reclamar labor muito maior, mas sim como
um dom gratuito".
Trabalhando
a dicotomia entre as diferentes colonizações a partir da dualidade proposta por
Buarque, Lippi de Oliveira ressalta as diferentes representações da natureza
que fundamentam cada processo:
"A
representação puritana da natureza contrasta com o que foi apresentado... Para
os puritanos, não cabia nem conquistar nem descobrir a natureza, mas o conhecimento e a
domesticação, tarefas que requeriam muito trabalho e muita "ação de
graça" (matéria-prima do rito nacional mais importante nos Estados Unidos: o dia de
Ação de Graças)."
A
plasticidade lusitana é bem exemplificada por Sérgio Buarque a partir do
aprendizado de técnicas de caminhada e de sinalização mato adentro. E, o
português adaptou-se às técnicas indígenas e as utiliza com grande sucesso e
sem menor prurido. E, ainda concluiu:
“Estavam
certamente nessa incorporação necessária de numerosos traços da vida do gentio,
enquanto não fosse possível uma comunidade civil e bem composta, segundo os
moldes europeus. E, nesse sentido ainda se aponta outra interpretação para
plasticidade portuguesa, na perspectiva de Sérgio Buarque.”
A
plasticidade é uma espécie de virtude dos fracos, espelhando a predisposição
para o ajuste e o compromisso, em vez da sobranceira imposição unilateral da
vontade também típica dos calvinistas.
É essa
circunstância que faz Sério Buarque afirmar que, neste terreno particular, a
fraqueza lusitana enfim foi sua força.
Antônio
Cândido definiu a obra de Buarque como um momento alto do pensamento
brasileiro, na medida que rompia com a solução liberal, que atribuía às elites
a tarefa de conduzir a nação e tutelar o povo e, passava a atribuir a esse
mesmo povo, a capacidade de iniciativa e criatividade política.
Aliás,
ressaltou Cândido que a obra foi editada pouco depois do esmagamento da Aliança
Nacional Libertadora e, foi voltada claramente contra os autoritarismos, tanto
os herdados da velha estrutura oligárquica, quanto os surgidos na conjuntura
contemporânea, como o integralismo.
Aliás,
o historiador identifica que o nacionalismo verde-amarelista, que desaguaria,
afinal, no integralismo, caminha, de fato, nesse sentido: ele denuncia, um
processo de remodelação conservadora e uma tentativa de manutenção de padrões
culturais[16]
de onde nascem os bacharéis e os caudilhos. E, tais padrões constituídos, em
resumo, a partir da tradição ibérica, um conservadorismo a que o historiador
foi honroso crítico e oponente.
O
Estado[17] concebido por Buarque é
estático no contexto de uma identidade, a do homem cordial, e não de uma
realidade social específica. A superação do homem cordial só será possível,
finalmente, através da modernização da sociedade brasileira, o que pressupõe a
urbanização e superação de seu personalismo e aristocratismo.
Não
pode se tomar o conceito de cordialidade, em “Raízes do Brasil”, como um
imutável diretriz na evolução. Cordialidade não significava “elogio”, mas sim,
“problema crítico”. O historiador mostrava que cordialidade vinha de cordis,
coração, e dizia respeito ao problema que os brasileiros tendem a inflacionar a
esfera privada em detrimento da pública. Por isso, teríamos instituições
frouxas e pouco ou nenhum apego aos partidos, à lei e ao Estado. Não seremos o eterno homem cordial[18].
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[1]
A origem da expressão é datada no período colonial brasileiro e se refere à
cobrança de impostos por Portugal. O quinto correspondia exatamente a vinte por
cento da produção de ouro da colônia. O apetite fiscal da coroa era tão grande
quanto a dificuldade em quitar suas dívidas com a Inglaterra. Portugal pouco
produzia além de vinhos e quinquilharias. Comprava dos britânicos quase tudo o
que consumia. Afirma-se que o termo era dirigido aos cobrados de impostos, que
ao exigir o quinto ouviam algo como: "Vá buscar o quinto nos
infernos!". A expressão ainda serve
para designar alguém, no sentido de amaldiçoar, mandando-a para longe, ou para
se referir ao lugar remoto. Começou a
ser usada em Portugal exatamente para se referir ao Brasil.
[2]
Foi em 1946 durante o discurso de recepção a Peregrino Júnior na Academia
Brasileira de Letras, Manuel Bandeira destacou, entre as virtudes do empossado,
a cordialidade. Afirmou: Ribeiro Couto inventou de uma feita a teoria do
"homem cordial". Segundo nosso amigo, a cordialidade seria a
contribuição brasileira à obra da civilização". Nascido em Santos, SP,
Couto ficou conhecido como fundador do Penumbrismo – que não chegou a ser uma
escola, mas, como ele mesmo definiu, “uma certa atitude reticente, vaga,
imprecisa,nevoenta,nojeitodeescreverversos”porvoltadosanos1920a1923–e por ser o
autor de Cabocla(1931), romance duas vezes adaptado para novela de televisão.
Por outro motivo, seu nome se ligou para sempre ao de Sérgio Buarque de
Holanda: foi o historiador paulista quem
deu “fundamento sociológico”, como disse Antonio Candido, à expressão “homem
cordial”, criada pelo poeta santista.
[3]
As bases da teoria do homem cordial também foram visitadas pelo professor
norte-americano Fred Ellyson, que localizou na Capilla Alfonsina, biblioteca de
Alfonso Reyes na cidade do México, as cartas de Ribeiro Couto ao amigo
mexicano. E, em 1984, Ellyson publicou o artigo intitulado Alfonso Reyes e
Ribeiro Couto: uma correspondência cordial, em Miscelânia de Estudos
Literários: homenagem a Afrânio Coutinho.
[4]
O indivíduo cordial se afirma como indiferente à lei geral sempre que esta
contrarie suas afinidades emotivas. Seu interesse está sempre voltado para si
mesmo, para aquilo que o distingue dos demais, do resto do mundo. E o
intelectual cordial, por sua vez, é este indivíduo por assim dizer voltado para o trabalho cerebral que
apresenta, se não todas, algumas das seguintes marcas: presunção de que talento
é de nascença e espontâneo porque
trabalho e estudo são ofícios vis; voluntário alheamento do mundo circundante;
crença mágica no poder das ideias; concepção de
saber como instrumento para elevar seu portador acima dos comuns
mortais; cultivo do saber para o autoenaltecimento; prática da erudição sobretudo formal; citar em língua estranha
para deslumbrar o leitor, como se exibisse uma coleção de pedras preciosas;
prestigiar teorias com endosso de nomes estrangeiros e difíceis; concepção
simplificada do mundo para colocar tudo ao alcance de raciocínios
preguiçosos. Os fascistas, como
expressão mais radical do tipo, são “ignorantes e idiossincráticos”. Mas,
acrescentemos, entre o homem cordial e o fascista há algumas mediações, das
quais a mais importante, dado o seu peso material, são as forças de proteção e
segurança da propriedade privada – exército, polícias e milícias – das quais
provém o seu contingente armado. (In: COSTA, Iná Camargo. Sérgio Buarque, o
" Homem Cordial" e uma crítica inepta. Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/sergio-buarque-o-homem-cordial-e-uma-critica-inepta/
Acesso em 18.01.2020.).
[5]
Sem ignorar os riscos de incompreensão que corria, Sérgio Buarque de Holanda
usou o exemplo (Antígone) e o argumento de Hegel para caracterizar o homem
cordial: é um súdito, ignorante do que
seja liberdade, cidadania e esfera pública em país que se dizia República.
Ainda nos tempos coloniais, objetivamente a serviço do rei (de Portugal, no
caso do Brasil), este súdito se considerava senhor absoluto de gentes e terras.
Era inclusive chefe militar, privilégio que só perdeu quando o Estado Português
se transferiu para cá, mas que mesmo assim permaneceu exercendo com os seus
exércitos de jagunços que entraram pelo século XX afora – e seus herdeiros
continuam barbarizando até hoje. É este o homem cordial, e não o povo
brasileiro, como queriam os Tristões de Ataíde, Cassianos Ricardos e demais
simpatizantes, inclusive Gilberto Freyre. O povo brasileiro sempre foi e
continua sendo vítima dos desmandos destes súditos ou vassalos que apoiavam (e
apoiam) seus atos em argumentos irracionais, como são os do “coração”, no caso
de sentimentos benevolentes, ou do fígado, no caso dos ódios e vendetas. A própria “indignação moral” faz parte deste
jogo hipócrita e sentimentaloide.
[6]
A popularização da expressão "homem cordial" causou polêmica tanto
entre os intelectuais como entre os populares, e ainda ganhou interpretações
diversas. As distorções foram as mais diversas, ainda uma vez de acordo com as
teorias que transcendem o campo da ciência e migram até para o cotidiano. Ao
adotar cordial no sentido pouco usado de ser referente a ou próprio do coração,
conforme se lê na definição presente no Dicionário Houaiss e, Sérgio Buarque
criava sucessivos mal-entendidos. O que é frequente até hoje, sendo por vezes
entendido como um sentido afável, caloroso, a adjetivos contrários ao conceito
elaborado pelo historiador.
[7]
Carl Schmitt é sem dúvida o maior pensador político do século XX e o conceito
do político é certamente de toda sua vasta bibliografia a obra mais conhecida,
talvez por essa razão tenha permanecido durante um longo período como sendo o
único livro do jurista traduzido para língua inglesa. Este curto ensaio de
Schmitt, é um dos grandes clássicos da filosofia política contemporânea, surgiu
originalmente de uma conferência proferida na Deutsche Hochschuhle für
Politik em Berlim por ocasião de um ciclo de conferências dedicado ao
problema da democracia, sendo publicado com o título "Der Begriff des
Politischen". Em 1927 (dois anos antes da crise de 1929, 6 anos
antes da ascensão dos nazistas ao poder)
no Archiv für Sozial Wissenchaft und Socialpolitik, tomo 58, n.1,
pp.1-33 e reeditado na série Probleme des Demokratie, Politische
Wissenchaft, Berlim, 1928, até ser
publicado em1932, pela Duncker und Humblot, Munich, esta edição servirá de
referência para a tradução de George Schwab. Por sua vez, Schwab é o grande
responsável pela difusão da obra de Carl Schmitt em solo americano através de
livros, artigos e traduções das suas obras mais importantes. Nessa edição expandida, ora publicada pela
Chicago University Press, aparecem também os comentários feitos por Leo
Strauss. Este último ensaio foi publicado originalmente com o título:
"Anmerkungen zu Carl Schmitt, Der Begriff des Politischen", no Archiv
für Sozialwissenchaft und Sozialpolitik, vol.67, n.6, pp. 732-749, em 1932. A
presença desse comentário de Strauss demonstra o alcance do debate que a obra
provocou nos anos que se seguiram. Além
do comentário de Strauss, a edição traz também a conferência que Schmitt
proferiu em Barcelona em outubro de 1929, "Das Zeitalter der Neutralisierungen
und Entpolitisierungen" ("A era das Neutralizações e
Despolitizações"), publicada no mesmo ano na Europäische Revue e anexada à
edição de 1932 do Conceito do Político. (In: SILVA, Washington Luiz. Carl
Schmitt e o conceito limite do político. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100
512X2008000200010 Acesso em 17.01.2020.
[8]
Cassiano Ricardo se opusera ao uso do vocábulo "cordial porque seria
demasiado formal e protocolar, quando o capital sentimento do brasileiro seria
a bondade ou mesmo certa técnica de bondade. A conexão integrava a retórica de
um defensor letrado do Estado Novo, Feldman. Aliás, Almir de Andrade, em Força,
Cultura e Liberdade, de 1940, voltará à cordialidade como princípio fundador do
Estado Novo. Sem dúvida é frouxo o leito semântico da cordialidade de Buarque
de Holanda. E, Cassiano Ricardo, ressaltou essa e renegou-lhe o eixo flutuante,
a cordialidade se punha em corrente oposta, isto é, referindo-se ao lastro que
lhe interessava ideologicamente.
[9]
Durante o Estado Novo, Getúlio Dornelles Vargas referenda a Constituição de
1.937, escrita por Francisco Luis da Silva Campos, conhecida por Polaca, por
ter inspiração na Constituição fascista da Polônia.
[10]
Escritores e estudiosos de áreas diversas já se detiveram na compreensão do conceito
de “homem cordial”. Oswald de Andrade tratou do assunto em “Do Pau-Brasil à
Antropofagia e às Utopias”, no capítulo intitulado “Um aspecto antropofágico da
cultura brasileira: o homem cordial”. Entre outros, estudaram o tema o
historiador inglês Peter Burke, o cientista político Gabriel Cohn, o professor
de literatura Alcir Pécora, Antonio Candido e, mais recentemente, o professor de
literatura João Cezar de Castro Rocha, em “O Exílio do Homem Cordial”.
[11]
Jacques Leenhardt é sociólogo, filósofo e crítico. E revelou que como francês,
só foi conhecer Debret no Brasil. Estudioso de Sartre, Burle Marx e Gilberto
Freyre, conhecedor da língua portuguesa e veio ao Rio de Janeiro para seminário
na Bienal do Livro em 26.09.2015.
[12]
Uma das críticas suscitadas em relação à obra Sobrados e mucambos dizia
respeito a uma eventual simplificação dos tipos de habitação existentes no
período em estudo ou à ausência de referência a outras formas de moradia, como,
por exemplo, a tejupaba que era uma espécie de cabana coletiva de
influência indígena. Outra crítica auferida refere-se que a obra focava um
pequeno trecho do Brasil (mais particularmente ao Nordeste ou à área de
Recife-Olinda) seriam aplicáveis as generalizações do sociólogo.
[13]
Enfim, o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda não é exatamente aquilo que
o senso comum deduz à primeira vista que se depara com o conceito-chave de sua
obra. O cordial não indica somente bons modos e gentileza, vem de cordis, isto
é, relativo ao coração. Para o historiador o brasileiro não suporta o próprio
peso da individualidade, precisa viver nos outros. A apropriação afetiva do
outro seria uma estratégia psicológica e comportamental predominante na
sociedade brasileira e ainda parte integrante de nosso processo civilizatório.
A cordialidade significa poder iludir na aparência. Equivale a um disfarce que
permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções. O
brasileiro dispensa as formalidades, pretende estreitar as distâncias, não
suporta a indiferença e prefere ser amado ou odiado.
[14]
A grande herança dos tempos coloniais é a família patriarcal. Esta “fornecia a
ideia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão
entre os homens. Como resultado, temos o predomínio, na vida social, dos
sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e
antipolítica; uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família”. Com
o predomínio do poder da família patriarcal herdada da colônia, fica explicada
a nossa impossibilidade de termos um Estado democrático.
[15]
Para adequadamente entender nossa cordialidade é indispensável referir-se a
duas heranças que tanto oneram nossa pobre cidadania, a saber: a colonização e
a escravidão. A colonização produziu em nós o sentimento imediato de submissão,
tendo que assumir as formas políticas, na língua, na religião e nos hábitos do
colonizador português. Já pela escravidão tão bem abordada por Jessé Souza cabe
recordar que entre 1817 a 1818, quando mais da metade do Brasil era composta de
escravos, na ordem de 50,6%. E, atualmente, cerca de mais de 60% possui em seu
sangue a origem dos afrodescendentes. E, ainda são discriminados e postos nas
periferias, além de humilhados ao ponto de perderem a própria autoestima. A
escravidão fora internalizada através da discriminação e do preconceito contra
o negro que devia sempre servir, porque antes fazia tudo de graça e, imagina-se
que deve continuar assim. Essas duas tradições estão presentes no inconsciente
coletivo brasileiro em termos não propriamente de conflito de classes, mas
antes de conflitos de status social. Aliás, todas essas contradições e
paradoxos de nossa cordialidade aparecem constantemente nas redes sociais. Onde
somos frugalmente contraditórios.
[16]
Na cultura cordial a separação entre família e Estado se torna tênue ou mesmo
imperceptível. O Estado é erigido como modelo paternalista, que estende seus
braços para atender as necessidades, no entanto, de forma personalista e que
impede a livre associação. O patrimonialismo prevalece sobre a burocracia, os
cargos de confiança parecem ter mais sentido diante do imperativo da
cordialidade que os cargos conseguidos por capacidades próprias.
[17]
Em 17 de janeiro do corrente ano, o atual Presidente da República exonerou o
Secretário Nacional da Cultura, Roberto Rego Pinheiro, conhecido como Roberto
Alvim, que fez um discurso no qual utilizou frases idênticas e similares às
usadas por Joseph Goebbels, que era Ministro da Propaganda de Adolf Hitler
durante o governo nazista. Aliás, o referido Ministro nazista fora um de seus
principais idealizadores. Uma de suas lapidares frases, foi in litteris:
"Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade". Era essa a
metodologia de Hitler na Alemanha Nazista para exercer um maciço controle sobre
as instituições educacionais e culturais bem como dos meios de comunicação.
[18]
“Na verdade, o brasileiro seria violento”, contrapõe João Cezar de Castro
Rocha, ilustre professor de Literatura Comparada da UERJ, ao destacar o equívoco
que comumente acontece diante de uma leitura apressada de Raízes do Brasil. Se
o homem cordial é o sujeito dotado de paixões e que age com o coração. Sérgio
Buarque, então, cunhou o seu homem cordial com base no nosso legado rural de
índole patriarcal, fruto de um passado agrário, onde as relações eram
naturalmente desenvolvidas sob a marca da pessoalidade. Para Sérgio, neste rito
de passagem – do campo para a cidade -, e no peso que ele carrega, está a
matriz genuína da cordialidade brasileira, que, não por outro motivo, teria
seus dias contados: a urbanização inevitável poria fim a ela.
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