O contexto histórico-social
contemporâneo é bastante desafiador, ainda mais perante a presente crise
sanitária em face do Covid-19, somada à crise institucional que vivenciamos
perante no cenário político brasileiro.
O Direito Civil brasileiro
notadamente apegado à tradição dos postulados da modernidade e sempre atendeu
com maior relevância aos direitos fundamentais de primeira geração[1] e, seus institutos
previstos no Código Civil brasileiro de 2002 que buscavam cercar a propriedade
com o máximo de proteção jurídica possível contra as interferências estatais e,
ainda, conferir estabilidade ao uso, gozo e fruição desta.
Mas a realidade revelou a
imperiosa necessidade de haver a intervenção estatal promovendo o chamado
dirigismo contratual[2] com o fim de proteger a
dignidade humana. Afinal, há princípios de ordem pública cuja finalidade é o
valorar o humano principalmente através da funcionalização dos contratos.
As teorias revisionais com
fundamento na cláusula geral da rebus sic
stantibus que passou a mitigar o pacta
sunt servanda. O presente texto pretende debater a flexibilização da
obrigatoriedade dos contratos diante da atual pandemia de coronavírus.
A pandemia[3] dentro do contexto geral é
classificada como força maior, sendo de todo irresistível apesar de ser
relativamente previsível. A pandemia atingiu e ainda atinge com variado grau de
gravidade os mais diversos setores da economia brasileira, e quiçá mundial,
impedindo ou mesmo gerando dificuldades para pessoas físicas, pessoas jurídicas
para cumprirem seus contratos. Segundo Norberto Bobbio, vivemos em uma
sociedade pautada no contrato e em sua obra intitulada "Crise de La Democrazia e Neocontratualismo"
de 1984 onde trabalhou com o conceito de neocontratualismo[4]. Inicialmente o contrato
deveria ser honrado sempre, sendo irrelevante a alteração das condições,
qualquer que seja a interferência externa.
Com o tempo, atenuou-se a
rigidez desse postulado e, os contratos de prestação prolongada no tempo,
passaram a serem sujeitos às incertezas do futuro e, advindo lei para o
estabelecimento de mecanismos de reequilíbrio contratual, com fundamento na
vedação ao enriquecimento sem causa.
Assim, os contratos afetados
não podem submeter-se a inflexibilidade do pacta
sunt servanda, aplicando-se o princípio do rebus sic stantibus que prega que o contrato só se mantém nas
mesmas condições pactuadas enquanto as coisas permanecerem do mesmo modo. De
sorte que a excessiva onerosidade provocada por evento posterior imprevisível
ou irresistível impõe forçosa revisão de cláusulas que constituíam a base do
negócio. Restituindo-se o equilíbrio contratual existente no status quo ante.
O novo contexto da legalidade
civil-constitucional pressupõe a justificação da normatividade regulada por
parâmetros de avaliação de atos, atividades e comportamentos nas relações
jurídicas. A cláusula rebus sic stantibus
então revela que a relação contratual de trato sucessivo deve permanecer tal e
qual a sua celebração e, desta derivavam várias teorias revisionais que tanto
influenciaram o direito pátrio.
A teoria da imprevisão surgiu
da fusão da cláusula rebus sic stantibus
e do elemento interpretativo imprevisão, no qual essa se torna elemento
protagonista. A teoria da imprevisão funciona como regra de justiça do manter o
equilíbrio[5] dentro das relações
contratuais, sendo conservante da comutatividade contratual[6].
Por motivos éticos e morais,
procura-se uma relação contratual saudável onde deve viger a proporção entre a
vantagem auferida e o sacrifício equivalente.
Assim pela teoria da imprevisão
em face dos contratos comutativos e de execução diferida, a rebus sic
stantibus que determina que o contrato apenas tenha força obrigatória
enquanto persistirem os suportes fáticos que lhes serviram de fundamento.
Assim, as excepcionais
mudanças no quadro fático que gerem desproporção entre vantagens e sacrifícios
entre os contratantes, pode propiciar a resolução ou revisão contratual. A
doutrina aponta que a onerosidade deve se abater sobre o devedor e, o
acontecimento situar-se fora da álea normal dos contratos daquela espécie.
A teoria da quebra da base
objetiva é de origem inglesa, mas fartamente aceita pelo direito alemão e,
basta haver o rompimento da equivalência entre as prestações contratuais ou
ainda a frustração da finalidade do contrato para admitir a sua revisão, não
sendo necessário arguir a imprevisibilidade do fato superveniente.
A teoria em comento difere da
teoria da imprevisão pois admite que o contrato tenha base objetiva que
corresponde a um conjunto de circunstâncias cuja existência sustenta o contrato
e que seriam indispensáveis para que os contratantes atinjam seu objetivo.
De sorte que pela teoria da
quebra da base objetiva, se estas se perdem ipso facto, o contrato deixa ter
razão de existir. Em Portugal, tal
revisão contratual é prevista em cláusula aberta que tem por fim permitir que a
jurisprudência dê soluções justas conforme o caso concreto e conforme o abalo
sofrido no equilíbrio promovido pelas alterações das circunstâncias em que
foram os contratos celebrados (vide art. 252, nº2 do Código Civil Português).
Diferentemente o Código Civil
brasileiro de 2002 consagrou a teoria da imprevisão e, análise de julgados de
nossos Tribunais revela que nem sempre foi assim. Na jurisprudência brasileira,
a teoria da quebra da base objetiva do contrato era aplicada mesmo antes de sua
previsão expressa no CDC.
Largamente considerada nos
contratos imobiliários celebrados em moeda em curso forçado que era o cruzado
num sistema caracterizado pela instabilidade monetária e, por forte intervenção
estatal na tentativa de controlar a inflação.
Primeiramente, a dita teoria
no direito pátrio fora reconhecida em desfavor do consumidor e, isso se
inverteu com o surgimento do CDC que a positivou no ordenamento jurídico
pátrio. A teoria em comento dispensa a
imprevisibilidade do fato superveniente e desequilibrador das prestações contratuais,
podendo ser invocada em qualquer contrato desde que a modificação das
circunstâncias iniciais, ainda que previsíveis, comprometendo o pacta sunt
servanda e, também a segurança jurídica.
Já em 2003, pelo Código Civil
de 2002 entrou em vigor a teoria da imprevisão por meio do artigo 478 para os
contratos de execução continuada ou diferida, quando houver onerosidade
excessiva, em decorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis,
podendo o devedor pedir a resolução do contrato.
A onerosidade deve advir de
extrema vantagem econômica para o outro contratante e, nesse sentido o
Enunciado 175 do CJF/STJ apontava que a imprevisibilidade e extraordinariedade
eram fatores de desequilíbrio contratual e nas consequências, mas não apenas, in
litteris: 175 – Art. 478: A menção à imprevisibilidade e à
extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada
não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação
às consequências que ele produz.
Outros Enunciados 365 e 366 do
CJF/STJ, in litteris:
Enunciado 365: A extrema vantagem do art. 478 deve ser
interpretada como elemento acidental da alteração das circunstâncias, que
comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva,
independentemente de sua demonstração plena. Referência Legislativa: Norma:
Código Civil 2002 - Lei n. 10.406/2002; ART: 478.
O art.479 C.C. apenas concede
ao réu a faculdade de manter o contrato em plano revisional, desde que concorde
em modificar equitativamente as cláusulas contratuais. A revisão contratual é
prestigiada pelo princípio da conservação dos contratos e da função social dos
contratos.
Enunciado 366: O fato
extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que
não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação. Referência
Legislativa: Norma: Código Civil 2002 -
Lei n. 10.406/2002; ART: 478.
Enunciado 176: Em atenção ao
princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de
2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e
não à resolução contratual. Referência Legislativa: Norma: Código Civil 2002 - Lei n.
10.406/2002; ART: 478.
Enunciado 367 CJF/STJ: Em
observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por
objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo
equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada sua vontade e
observado o contraditório. Referência Legislativa: Norma: Código Civil 2002 -
Lei n. 10.406/2002; ART: 479.
Isso não significa que a
liberdade contratual fique superada pois a autonomia privada, só pode ser
exercida dentro dos limites de valores fundamentais da CF/1988, o que exige,
respeito, lealdade, eticidade e socialmente dos contratantes.
A cláusula geral da função
social dos contratos viabiliza que a obrigação de realização de parcelamento de
débitos. Enfim, a hermenêutica contratual deve convergir com a constitucional,
principalmente no que tange aos direitos, fundamentais como a dignidade da
pessoa humana, do trabalho e da livre iniciativa e da solidariedade. Consagra o
fim econômico do contrato de modo justo e equânime, e, não ignora a liberdade
de contratar e o pacta sunt servanda.
Portanto, em face a pandemia
diante da quebra da base do negócio jurídico é possível promover a revisão
contratual no sentido de tornar exequível o contrato e o cumprimento
obrigacional.
Referências:
TARTUCE, Flávio. Manual de
Direito Civil. Volume Único. 8ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2018.
______________. Manual de
Responsabilidade Civil. Volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2018.
SCHEREIBER, Anderson; TARTUCE,
Flávio; SIMÃO, José Fernando; LEITE, Marco Aurélio Berra; DELGADO, Mário Luiz.
Código Civil Comentado. Doutrina e Jurisprudência. 2ª edição. Rio de Janeiro:
Forense, 2020.
[1]
Os direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão são os direitos
individuais com caráter negativo por exigirem diretamente uma abstenção do
Estado, seu principal destinatário. Alguns exemplos são: o direito à vida, à
liberdade, à propriedade, à liberdade de expressão, à participação política e
religiosa, à inviolabilidade de domicílio, à liberdade de reunião, entre
outros. Tais direitos foram os primeiros a serem conquistados pela humanidade e
se relacionam à luta pela liberdade e segurança do indivíduo perante o Estado.
São direitos básicos dos indivíduos relacionados à sua liberdade em vários
aspectos. De fato, a primeira geração dos direitos seria a dos direitos civis e
políticos, fundamentados na liberdade (liberté),
que tiveram origem com as relações burguesas.
[2]
O dirigismo contratual é princípio limitador da autonomia da vontade das partes
contratantes, por intervenção do Estado, em função de fins sociais e das
exigências do bem comum, este advém da necessidade de equilibrar o
individualismo contratual, pois um dos princípios bases das relações
contratuais é autonomia das partes de contratar ou não de forma consensual, que
quase fosse absoluta, cada indivíduo buscaria apenas o interesse próprio
causando consequências e desvantagens na relação contratual para uma das
partes. Um dos princípios basilares da relação contratual é a autonomia da
parte de contratar ou não de forma consensual. Todavia, aponta o artigo 421 do
C.C. que "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato". Isso mostra que essa autonomia da vontade não
pode ser absoluta, eis que a mesma possui uma limitação; o dirigismo contratual
sobrepondo os direitos coletivos acima dos interesses individuais. Os tribunais
lentamente passaram a admitir tal intervenção, como se verifica em poucas
decisões do STF, das décadas de 1950 e 1960.
Com a chegada do Código de Defesa do Consumidor, passou-se a adotar como
forma de resolução do contrato a teoria da imprevisão, que permite a revisão
dos contratos quando ocorrer a onerosidade excessiva, coibindo os institutos da
lesão, do abuso do direito e do enriquecimento sem causa, que são praticados
ostensivamente no mercado atual, por meio dos contratos de adesão.
[3]
Como circunstância imprevisível e irresistível, o Coronavírus pode ser
classificado como hipótese de caso fortuito ou força maior e, assim, invocar o
art. 393 do CC: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso
fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.
[4]
Bobbio aparece como um dos mais profícuos colaboradores do neocontratualismo. O
fio condutor de Bobbio é a ideia de que democracia e socialismo são termos
diametralmente opostos, ou seja, o autor italiano cria um paradoxo, no qual,
sem democracia não haveria socialismo, mas com socialismo não haveria
democracia. Parece que Bobbio sofreu influência de um dos grandes pensadores da
escola clássica de economia política, John Stuart Mill, quando prefere fazer
convite constante ao consenso, a repactuação, do que partir para o conflito ou
confronto. Buscou assim como Mill uma combinação entre teorias que expressam
visões dicotômicas de mundo, isto é, promover a conciliação entre o liberalismo
(capital) e socialismo (trabalho). Diferentemente de Marx, que afirmou que para
superar o modo de produção capitalista e toda exploração e alienação gerada por
este, seria necessário tomar o capital e trabalho como forças antagônicas e
contraditórias.
[5]
Em outra passagem, seu art. 478 do C.C. dispõe: “Nos contratos de execução
continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar
excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a
resolução do contrato”. A imprevisibilidade futura autoriza a revisão do
contrato.
[6]
O Código Civil, ao prever a teoria da imprevisão, com base no princípio rebus sic stantibus, estatuiu em seu
art. 317: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta
entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz
corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real
da prestação”. Não mencionou a irresistibilidade (força maior), contentando-se
com a imprevisibilidade (caso fortuito).
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