O habeas corpus tem sua
origem no Direito Romano, em que todo cidadão podia reclamar a exibição do
homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada, conhecida por
interdictum de libero homine exhibendo.
Uma parte da doutrina, porém,
aponta sua origem no Capítulo XXXIX da Magna Carta, outorgada pelo rei João Sem
Terra, em 1215. O artigo 48 explicitamente mencionava: Ninguém poderá ser
detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdade, senão em virtude
de julgamento por seus pares, de acordo com as leis do país.
Sob domínio de Carlos I, que
pretendia governar sem leis e sem nobreza, a campanha dos ingleses pela
liberdade recomeçou. Detestado por seu excessivo autoritarismo e
arbitrariedade, chegou a impor determinado imposto geral e sistemático,
denominado ship money, o que
acarretou uma série de protestos da nobreza, repelidos com violência e prisões
ilegais.
Tal situação perdurou até o
movimento de oposição que determinou posteriormente a chamada Petition of Rights (Petição de Direitos)
que foi uma declaração formal redigida por Thomas Wentworth em que foram
reafirmadas as liberdades públicas fundamentais e o respeito às leis de habeas
corpus. Textualmente afirmava: We must
vindicate our ancietne liberties, we must reforce the laws made by our
ancestors".
O rei, na ocasião, viu-se
obrigado a dar seu consentimento expresso à Petição de Direitos em 1628, o que
representou uma significativa conquista em defesa dos direitos individuais.
Porém, mesmo depois, as ordens de habeas
corpus eram denegadas constantemente, ou, o que era ainda pior,
simplesmente desobedecidas.
De sorte que as reivindicações
libertárias continuaram e, em 1679, sob o reinado de Carlos II surge o Habeas
Corpus Act consagrando definitivamente o writ, reconhecido como remédio eficaz
para promover a soltura ou liberação da pessoa ilegalmente presa ou detida.
Entretanto, o writ limitava-se a atender pessoas
acusadas de crime, não se reconhecendo aplicação nos demais casos de prisão
ilegal.
Convém alertar que as leis
inglesas, desde a Magna Carta até o Habeas Corpus Act serviram de base à
Constituição dos EUA, em 1778, a qual referiu-se ao habeas corpus, afirmando
que esta garantia só poderia ser suspensa para garantir a segurança pública, no
caso de rebelião interna ou invasão.
Em 1789, o habeas corpus fora incluído na
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. E, em 1816 surgiu
outro Habeas Corpus Act ampliando o
anterior e alcançando qualquer ofensa à liberdade dos indivíduos, ainda que não
acusados de qualquer crime.
O habeas corpus encontra-se
presente em quase todas as legislações do mundo. E, entrou pioneiramente na
legislação brasileira, de forma expressa com a promulgação do CPC, em 1832,
cujo o artigo 340 dispunha in litteris:
“Todo cidadão que entender que ele ou outrem
sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade, tem direito de
pedir uma ordem de habeas corpus em
seu favor.”.
Aliás, para Pontes de Miranda,
o writ já constava implicitamente no direito pátrio desde a Constituição
Imperial de 1824, que em seu artigo 179,§8º preceituava que: "Ninguém será
preso, sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei e, nestes, dentro
do prazo de 24 horas contadas da entrada na prisão sendo em cidades, vilas e
outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz e, nos lugares
remotos, dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta à extensão do
território, o juiz por uma nota por ele assinada, fará constar ao réu o motivo
da prisão de seu acusador e os das testemunhas, havendo-as."
Fernando Capez noticia que a
primeira forma conhecida no ordenamento jurídico pátrio foi a habeas corpus
liberatório, que visa fazer cessar um constrangimento à liberdade ambulatória.
E, mesmo com as grandes
alterações introduzidas no CPC de 1832 estendeu-se o remédio heroico àqueles
casos em que o cidadão simplesmente se encontrava ameaçado na sua liberdade de
ir e vir considerando-se a figura do habeas corpus preventivo.
Finalmente com a primeira
constituição republicana no Brasil, em 1891, o habeas corpus é citado
explicitamente pela primeira vez dentro do bojo constitucional, no artigo 71,
§22º. Quando se cogitou em dar-se o habeas corpus ao indivíduo que estivesse
para sofrer ou na iminência de perigo de sofrer violência ou coação, por
ilegalidade ou abuso de poder.
Aliás, foi diversa a
interpretação do dispositivo legal feita por Pedro Lessa e Ruy Barbosa o que
gerou uma famosa polêmica. Pois Lessa sustentava que o writ se limitava à
defesa da liberdade de locomoção, não podendo ser empregado para a defesa de
outros direitos líquidos e certos.
Já Rui Barbosa, por sua vez,
entendia que no silêncio do texto constitucional, não se admitia a
interpretação restritiva do remédio heroico, podendo o mesmo ser usado para
defesa de qualquer direito.
Verificou-se que a tese de Rui
Barbosa se sagrou vitoriosa e prevalente no STF, que passou a interpretar
amplamente o habeas corpus.
A reforma constitucional
brasileira de 1926 esvaziou a discussão, restabelecendo a finalidade clássica
do writ qual seja a tutela exclusiva da liberdade ambulatória. O artigo 72,
§22º ficou com a seguinte redação: Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém
sofrer violência por meio de prisão ou constrangimento ilegal na sua liberdade
de locomoção".
Com a Constituição brasileira
de 1934 foi novamente suprimida a expressão "locomoção" pois o artigo
113, XXIII dizia: "... violência ou coação em sua liberdade, por
ilegalidade ou abuso de poder".
Entretanto, antes que se
entabulasse nova discussão, o mesmo artigo 113, no inciso XXXIII, criou o
instituto de mandado de segurança, com finalidade residual. A Constituição de
1946, em seu artigo 141, inciso XXIII, manteve o habeas corpus restrito à
tutela da liberdade de ir e vir.
A Carta Constitucional de 1967
tratou do instituto no artigo 150, §20 e EC 1/1969 disciplinou-o no artigo 153,
§20º sempre restrito à defesa da liberdade de locomoção. E, atualmente na Constituição Cidadã prevê o
habeas corpus está previsto no artigo 5º, LXVIII, com interpretação restritiva.
O conceito de habeas corpus é de remédio judicial que
tem por fim evitar ou fazer cessar a violência ou a coação à liberdade de
locomoção decorrente de ilegalidade ou de abuso de poder.
Sua natureza jurídica é de
ação penal popular com base constitucional, voltada à tutela da liberdade
ambulatória, sempre que ocorrer os casos elencados no artigo 648 do CPP.
Nas hipóteses dos incisos II,
III, IV e V assume função de autêntica ação penal cautelar. E, nos incisos VI e
VII, funciona como ação rescisória (ou constitutiva negativa), se a sentença já
tiver transitado em julgado, ou como ação declaratória, se o processo estiver
em andamento. Assim, percebe-se, no inciso I, poderemos ter ação cautelar,
declaratória ou constitutiva, dependendo do caso concreto.
Há duas espécies de habeas
corpus, a saber: liberatório ou repressivo: destina-se a afastar o
constrangimento ilegal efetivado, à liberdade de locomoção; a espécie
preventiva que se destina a afastar a ameaça à liberdade de locomoção. Assim, in casu, corresponde a um salvo-conduto.
Quanto à legitimidade ativa
para o habeas corpus, cabe: a) pode ser impetrado por qualquer pessoa,
independente de habilitação legal ou representação de advogado, sendo até dispensada
a formalidade de procuração.
Desta forma, a analfabeto pode
impetrar, desde que alguém assine a rogo; também o Promotor de Justiça também
poderá propor, conforme o artigo 32, I da Lei Orgânica do Ministério Público
(Lei 8.625/1993); poderá ser impetrado por pessoa jurídica e pessoa física.
Quanto a impetração por pessoa
jurídica há dois posicionamentos, uma admitindo e outro não admitindo.
Porém, o juiz de direito não
poderá impetrar em razão do princípio da inércia da jurisdição, mas poderá, na
qualidade de cidadão. Também o Delegado de Polícia poderá impetrar, porém, não
como autoridade, mas como cidadão.
Quanto a legitimidade passiva
prevalece o entendimento de que pode ser impetrado contra ato particular posto
que o texto constitucional cogita apenas em coação por abuso de poder, mas
também por ilegalidade. Exemplificou Fernando Capez, o caso de filho que
interna pais em clínicas psiquiátricas para livrar-se da obrigação de cuidar
deles.
É cabível contra juiz de
direito, o promotor de justiça e o delegado de polícia.
Já houve quem dissesse que o
pior da ditadura, não é o que ocorreu durante, nem o tanto que se padeceu por
causa dela, mas principalmente pelo que se herda dela. Quando a maioria da
primeira turma do STF, em 7.8.2012, negou a jurisprudência do próprio tribunal
ao deixar de admitir o habeas corpus
impetrado como substitutivo de recurso ordinário, posto que significasse uma
burla ao sistema recursal previsto constitucionalmente.
E essa decisão proferido foi
sendo reproduzido pela mesma turma em outros casos concretos, e foi capaz de
ganhar a adesão unânime da quinta turma do STJ, conforme se vê do inteiro teor
do HC 239 550/RJ, a qual endossando o argumento exposto no leading case da primeira turma do STF, ressaltou que a então nova
decisão impunha a premente necessidade de se reformular a admissibilidade da
impetração originária também no STJ, adequando-se à nova orientação da Suprema
Corte, em consonância perfeita com os princípios constitucionais, principalmente
o devido processo legal, da celeridade, da economia processual e ainda o da
razoável duração do processo, a fim de que não seja conhecido o habeas corpus,
um remédio heroico, como substitutivo do recurso ordinário, sem prejuízo, de
eventualmente, e se for o caso, deferir-se a ordem de ofício, nos feitos em
trâmite.
A guinada jurisprudencial se
iniciou especialmente quando se percebe que o habeas corpus é simplesmente uma
das pedras basilares de todo o mundo livre, essa nova interpretação liderada
pela maioria da primeira turma do STF, trouxe a ressurreição da tese jurídica
sustentada francamente pela ditadura militar de 1964.
Entre os fundamentos para
justificar os argumentos da maioria da primeira turma do STF, temos:
1. a competência do STF
rege-se por sistema de direito estrito, não admitindo a possibilidade de ser
ampliada até as situações extravasem aos limites exatos e fixados e, portanto,
o uso do habeas corpus como substituto de recurso ordinário viola gravemente o
sistema recursal prevista pelo texto constitucional vigente. Em síntese, o habeas corpus substitutivo de recurso
não está previsto na Constituição brasileira vigente.
2. Ademais o referido
substitutivo é resultado da construção jurisprudencial, e fora admitido quando
não existia sobrecarga de processos, hoje registrada tanto no STF como no STJ,
razão pela qual os referidos tribunais estão com elevado número de habeas
corpus, e tal desvirtuamento tem pernicioso efeito nos tribunais superiores,
diante de suas funções precípuas, quais sejam, o controle a
infraconstitucionalidade e da constitucionalidade. Assim, o STJ seria o órgão a
dar a última palavra na interpretação de lei federal, ao passo que o STF seria
o guardião da Constituição, e ipso facto, também da interpretação
constitucional.
3. O entendimento prevalente
no sentido de se conhecer de habeas
corpus substitutivo de recurso contrasta com os meios de contenção de
feitos processuais, além, da imposição recente de filtros tais como a súmula
vinculante e a repercussão geral, com a finalidade de viabilizar o exercício
pleno, pelo Supremo Tribunal Federal, da nobre função de guardião da Carta
Magna.
4. Reclamam os ministros que o
habeas corpus no Brasil tem obtido um uso desvirtuado principalmente por não
atacar somente prisões, mas diversos tipos de nulidades com efeitos no direito
de ir e vir banalizando-se o remédio heroico.
5. A inadmissibilidade do
habeas corpus como substitutivo de recurso ordinário, em tese, não origina
prejuízo a qualquer paciente, pois que continuaria sendo possível a concessão
da ordem, se couber, de ofício, nos habeas pendentes.
6. A utilização do habeas
corpus substitutivo de recurso abre a oportunidade para a má-fé processual,
pois é cômodo não interpor o recurso ordinário quando se pode, a qualquer momento,
buscar infirmar a decisão há muito tempo proferida, mediante o denominado
habeas corpus substitutivo, galgando-se, assim, a passagem do tempo, e chegando
até mesmo, na prescrição.
Os doutrinadores Paulo
Bonavides e Paes de Andrade alertam que o esquecimento é o verdadeiro adubo da tirania,
portanto, é curial resgar a tradição jurídica que avessa aos formalismos vieram
a desnaturar o habeas corpus, desviando-o de suas nobres finalidades.
Afinal, o indivíduo
constrangido ilegalmente em sua liberdade, podia invocar o remédio da lei em
qualquer altura na escala judiciária.
Assim, não havia uma instância
específica em matéria de habeas corpus. E, a única restrição a essa autoridade
consiste na regra, incorporado afinal ao direito positivo brasileiro pela Lei
2.033, de 1871 em seu artigo 18, segundo a qual ‘a superioridade do grau na
ordem da jurisdição judiciaria é a única, que limita a competência da respectiva
autoridade em resolver as prisões feitas a mandado das mesmas auctoridades
judiciaes. (...)
Desse modo, a vítima de
constrangimento ilegal por ato de juiz inferior tinha o arbítrio de transpondo
as jurisdições intermediárias, procurar imediatamente o abrigo legal na mais
eminente.
Segundo Rui Barbosa este
regramento de competência do habeas corpus fora recepcionado integralmente pela
Constituição brasileira de 1891, em seu artigo 83, sendo uma das mais
importantes conquistas liberais da monarquia brasileira.
Seguindo essa lógica, veio o
Decreto 221 de 1894, que especificou as hipóteses de competência do STF, para
processamento e julgamento do remédio heroico, disseminando-se na monarquia,
prevendo expressamente ainda, o cabimento geral do processamento e julgamento do
habeas corpus pelo STF sempre que houvesse o perigo de consumar-se a violência
antes que o outro juiz ou tribunal pudesse conhecer do pedido.
Tamanho instrumento libertário
se constitucionalizou em 1934, tendo sido preservado pela Carta de 1937, ainda
que formalmente, e depois também na Constituição de 1946 e, também na Carta Magna
de 1967.
Todavia, com o AI - 6 de
1.2.1969 introduziu-se em complemento ao contido no artigo 114, II da CF/1967
de tal modo que passou a ter a seguinte redação in litteris: "Dê-se ao
offendido o arbitrio de procurar, quando possa, o tribunal menos frágil; mas
não se lhe tire o de valer-se dos outros quando aquelle, pela distancia, ou por
qualquer obstaculo, não estiver ao seu alcance."
Dessa forma, mesmo no período
mais agudo da história brasileira, na ditadura militar de 1964 rompeu-se
drasticamente a interpretação libertária antes existente desde nossa monarquia,
e que sempre persistiu em todos os textos constitucionais posteriores,
inclusive no bojo da Carta de 1967 conquanto no período do Estado Novo a
eficácia da garantia constitucional do habeas corpus a tenha sido quase que
anulada na prática.
E relativo ao efeito da
ruptura em análise, esclarece o advogado criminalista e professor Alberto
Zacarias Toron que "a vedação da utilização do habeas substitutivo do RHC
a tramitação do remédio heroico passou a ser mais lenta pois interposto o
recurso no Tribunal de origem, haveria de se aguardar as contrarrazões do
Ministério Público e a remessa dos autos à Capital Federal, coisas ainda hoje
comumente demoradas".
Conclui-se que ocorrera a ressurreição
do famigerado Ato Institucional 6/1969 através do STF em pleno século XXI o que
torna contemporânea e pertinente a argumentação redigida por Rui Barbosa em
1892 quando registrou publicamente as lições de liberdade do Imperial Conselho
de Estado em repreensão ao amesquinhamento do habeas corpus causado pelo STF de 1891.
Realmente, a dota ressureição
torna o guardião da Constituição Cidadã merecedor da maioria das críticas dirigidas
e publicadas há pelo menos de cento e vinte anos. Aliás, Rui Barbosa relata
quatro casos, de 1851, 1878, 1880 e 1883 nos quais os cidadãos foram presos
administrativamente, e ao contrário do que fez o STF republicano de 1891, o
Tribunal de Relação da Bahia em 1851, o Superior Tribunal de Justiça (1878), e
os Tribunais de Relação do Rio de Janeiro (1880) e do Recife (1883) todos se
deram por competentes e concederam a ordem de habeas corpus afastando as
prisões administrativas.
Enquanto que o Conselho de
Estado que era sempre suscitado para resolver conflito de atribuição entre
Judiciário e Administração confirmou as ordens de habeas corpus, sendo que o Aviso de 22.10.1883, consolidando o
controle das prisões administrativas pelo habeas
corpus, merecendo dar destaque in litteris: (...) Sua Majestade o
Imperador, conformando-se (...) com o parecer da maioria dos signatários da consulta das
seções de justiça e fazenda do Conselho de Estado (...), houve por bem declarar que nenhuma
providência cabe ao governo dar sobre o assunto; porquanto o recurso do habeas
corpus, já por sua natureza, já pelas
disposições expressas do art. 340 do Código Criminal e art. 18 da Lei
2.033, de setembro de 1871, é admissível
contra toda a pressão ou constrangimento ilegal, qualquer que seja o
motivo, que o determine, e qualquer que
seja a autoridade de que dimanem, salvo as exceções previstas no art. 18, entre as quais não compreende a prisão
administrativa (...)”.
Com relação a competência para
processamento e julgamento do habeas corpus. À exceção da limitação de 1871, já
mencionada anteriormente, no Império brasileiro era trivial o entendimento de
que qualquer autoridade judicial poderia apreciar o pedido de ordem de habeas
corpus, residindo exatamente aí a grande ironia o Supremo Tribunal da
Constituição Cidadã, que tantos serviços de inestimável valor tem prestado
desde 1988 à nossa República, pela maioria de sua primeira Turma invade as
catacumbas do Regime Militar em pleno século XXI para ressuscitar a razão
jurídica de um Ato Institucional que simplesmente rompeu, quando passou a
vigorar, com pelo menos um século de tradição libertária em matéria de habeas
corpus brasileiro.
O uso tão profuso do habeas
corpus nos Tribunais Superiores parece traduzir uma desordem, mas de fato, tudo
está em ordem. Goffredo Telles Junior apoiado em Henri Bergson, insigne filósofo
francês e Prêmio Nobel de literatura, esclarece que a desordem não é o
contrário da ordem, conforme se costuma pensar. Ela é, isto sim, uma ordem
contrária a outra ordem.
Bergson foi quem revelou a
natureza verdadeira de desordem. Foi o referido filósofo inglês quem demonstrou
a falsidade com que a questão da desordem é geralmente apresentada e deduzida.
Desordem, segundo Bergson, é o
nome dado à ordem não desejada, não querida e não procurada. É o nome da ordem
que desagrada, desgosta, decepciona, prejudica, infelicita e desola. Mas a
desordem é sempre uma ordem, eis que precisa ficar bem claro.
E, Telles relembra a imagem de
ruínas causadas por incêndio ou outra catástrofe qualquer, demonstrando, porém,
que escombros e destroços na verdade estão em ordem por serem os efeitos certos
de causas certas.
Eis o erro primordial da
maioria da primeira turma do STF, este excesso de habeas corpus impetrados junto
aos Tribunais Superiores, visto pelos Ministros como desordem, em realidade, significa
que nada mais existe que uma ordem. Pois é o efeito certo de causas certas.
Uma ordem que realmente
infelicita demais vários Ministros, ao ponto de gerar o renascimento de tese
jurídica do regime autoritário.
Tal ordem que desagrada aos
Ministros por alegado em excesso e por denunciar a desorganização no andamento
dos trabalhos, de outro lado, constitui o respiradouro de muitos brasileiros
encarcerados, na maioria esmagadora das vezes em locais deveras insalubres e
submetidos a processos criminais muitas vezes com defesa deficiente ou
praticamente ausente.
O excesso de encarcerados, que
de 2002 a 2011 mais que dobrou saltando para o oceano de mais de meio milhão é
sem dúvida, um fator determinante para tantos habeas corpus impetrados e,
ainda, o relatório da Defensoria Pública de São Paulo, que aponta a atividade
do Superior Tribunal em matéria de habeas corpus de 2002 a 2011, também cresceu
significativamente.
A prodigalidade no uso do habeas corpus talvez tenha origem no
número estratosférico de presos, e ainda, na imensa dívida social ainda
existente entre nós somada as práticas policiais e de persecução penal típicas
de Estados autoritários e as quais estão profundamente arraigadas,
infelizmente, nos costumes de nosso país.
Desta forma como o Judiciário
é o competente para tutelar a liberdade, no âmbito penal, não se teve como
escapa r de tantas impetrações de habeas corpus, na medida em que a validade do
exercício da jurisdição está atrelada a observância do princípio do
contraditório e da ampla defesa.
Neste atual contexto
dramático, o habeas corpus tornou-se o principal instrumento de defesa para
fazer cessar abusos e ilegalidades contra os autuados, acusados e condenados
definitivos.
O desvirtuado uso do habeas
corpus pois a tradição jurídica brasileira ampliou o cabimento do remédio
heroico para além de prisões, incluindo também o combate às ilegalidades de
diversos tipos no campo penal que possuam resultados no direito de ir e vir.
Segundo a maioria da primeira
turma do STF a culpa do excesso deve-se porque o habeas corpus serve de meio para sustentar pretensas nulidades.
Cumpre primeiramente sublinhar
que até mesmo o Código de Processo penal contrariando o entendimento da
primeira turma do STF admite expressamente o uso de habeas corpus quando o
processo for manifestamente nulo, o que confirma, a generosa tradição em defesa
da liberdade.
Apesar de que nosso CPP sendo fiel
à sua estrutura autoritária na temática de nulidades faz uso do adjetivo
"manifestamente", termo que só deve ser interpretado, atualmente, em
harmonia com a dignidade da pessoa humana. Significando uma ruptura da forma
legal, mesmo que não seja manifesta ou óbvia, deve ser sancionada de nulidade
se for possível que tenha influenciado no resultado final do processo.
Interpretação contrária não só
ataca a finalidade do processo penal como também nos força a admitir que o
sistema constitucional brasileiro de 1988 seria tão libertário quanto o do
Estado Novo em temática de manejo de habeas corpus contra nulidades
processuais.
É preciso, porém, transcender,
pois, a resistência centenária da generosa prática de não se limitar o uso de
habeas corpus brasileiro estritamente aos casos de prisão, também é o efeito
certo de muitas causas certas.
É cediço que no exercício da
defesa em foro penal há principais questões debatidas em instâncias superiores
através de habeas corpus abordam problemas relativos à produção probatória, ao
decreto de prisões cautelares e à violação de direitos dos condenados em
execução penal.
Ainda analisando os possíveis
e cabíveis recursos em face do CPP e da Lei de Execuções Penais. Caso o juiz
decida antecipar a produção probatória, ou ainda, decida fazer uso de
videoconferência, ou decida não intimar a testemunha de defesa, ou decida
prender cautelarmente o réu, ou denegar comutação ao condenado pela falta grave
posterior, questiona-se, qual seria o recurso cabível para a defesa que deseja
impugnar tais decisões imediatamente?
Assim, na seara da execução
penal, há o agravo, cuja lei nem mesmo admite pedido liminar por aplicar
subsidiariamente o recurso em sentido estrito.
Conclui-se, portanto, que o
agravo na execução penal é de pouca utilidade, especialmente quando persistem
violações contra teses já pacificadas pelos Tribunais Superiores, o que inclui
também algumas súmulas, e quiçá súmulas vinculantes, situação que merece
oferecer uma resposta mais rápida das instâncias superiores.
Porém, no processo penal de
conhecimento para existir impugnação imediata não existe recurso cabível, pois
não se encontra lugar para estas decisões no recurso em sentido escrito bem
como nos demais recursos previstos e arrolados no CPP.
Na seara do processo penal
prevalece a dureza do CPP de 1941 e a jurisprudência relativa às nulidades
conforme ressalta a exposição de motivos ressaltou que somente em casos
excepcionais é declarada insanável a nulidade.
Sempre que o juiz se deparar
com uma causa de nulidade, deve prover, imediatamente à sua eliminação,
renovando ou retificando o ato irregular, se possível, mas ainda que não o
faça, a nulidade considera-se sanada, seja pelo silêncio das partes, pela
efetiva consecução da finalidade visada pelo ato não obstante sua
irregularidade; seja pela aceitação, mesmo que tácita, dos efeitos do ato
irregular.
Assim, é pródiga a
jurisprudência brasileira penal em ampliar o espectro de aplicação do artigo
572 do CPP. E, não são tão raros os casos em que a ruptura da forma legal passe
distraída mesmo diante dos olhos do Judiciário, no momento do processamento do
ato.
O que se justifica, em boa
parte, pelo espírito do CPP do Estado Novo, a colocar a responsabilidade das
nulidades quase que inteiramente pesando sobre a defesa, aliado à aludida
inclemência jurisprudencial excetuada em poucos casos de reconhecimento de
nulidade absoluta.
Uma defesa minimamente
decente, deve cumprir suas tarefas mais básicas: garantir que sejam respeitadas integridades
física e moral de autuados, ou acusados ou condenados definitivos enquanto
membros da família humana; fiscalizar o respeito à ordem processual; procurar
obter no processo criminal uma solução jurídica ou humanamente mais justa;
fiscalizar, no caso de condenado definitivo, o respeito a seus direitos
fundamentais especialmente para que o fim principal da execução penal de
reintegração social deste, seja realmente factível.
Em resumo, de um lado o
sistema recursal não atende às reais e concretas necessidades da defesa, obrigando-a
ao uso do habeas corpus de forma ampliada e frequente.
De outro lado, o tratamento
benigno do CPP as nulidades, na prática, auspiciosamente transferindo à defesa
quase toda a responsabilidade de combatê-las e, ainda, a aplicação rigorosa deste
espírito jurisprudencial, salvo as exceções em que se aplicam a sanção de
nulidade absoluta.
Persiste ainda infelizmente
uma legislação processual penal autoritária em diversos aspectos, com os
agravantes decorrentes de sua aplicação também autoritária, torna mito difícil
e, quase impossível, o exercício de defesa efetiva, minimamente decente, sem
que se valha do habeas corpus.
Boa parte da doutrina se
pronuncia no sentido de que não haveria fundamento no texto constitucional
vigente para existir o habeas corpus substitutivo
de recurso. Sendo esse o entendimento da primeira Turma do STF. Porém, tal
interpretação, não resiste a uma aprofundada análise que nos faz lembrar dos
lamentos mais comuns de Rui Barbosa: "É sempre sob a invocação da legalidade
que a lei se viola (...)".
É importante ressaltar que a
quebra da longa tradição libertária impactada pelo Ato Institucional 6/69 que
expressamente proibiu a substituição do recurso ordinário por habeas corpus originário, meses depois
fora mantida pela Emenda Constitucional I, de 17.10.1969, in litteris:
“Art. 119. Compete ao Supremo
Tribunal Federal: (...) II – julgar em recurso ordinário: (...) c) os habeas corpus decididos em única ou
última instância pelos tribunais federais ou tribunais de justiça dos Estados,
se denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido
originário” (grifamos). Sobrevindo, porém, a redemocratização brasileira e, com
ela, uma nova Constituição apelidada de “Cidadã”, revogou-se a proibição expressa
da substituição do recurso ordinário por habeas
corpus originário, como se pode notar no texto atualmente vigente e
transcrito a seguir: “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) II – julgar, em
recurso ordinário: a) o habeas-corpus, o mandado de segurança, o habeas-data e
o mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores,
se denegatória a decisão; (...)”.
Através da simples sucessão de
textos jurídicos indica que o STF ressuscitou um legado da ditadura militar de
1964, indiscutível e inequivocamente revogado, interpretando de forma
ampliativa para a restrição indevida da garantia fundamental.
Assim, é desnecessário frisar
que tal conduta lesa simultaneamente a três regras sagradas da hermenêutica,
não fosse o Superior Tribunal responsável por proferir a última palavra em
matéria constitucional brasileira a cometer esse imperdoável deslize.
Reconhecer válido o texto
expressamente revogado de forma tácita; interpretar ampliativamente restrição
(revogada) a garantia fundamental; escolher a opção interpretativa mais
conveniente para esvaziar o trabalho do Tribunal e não para a proteção da
pessoa humana, violando princípio hermenêutico comum em matéria de direitos humanos,
falta esta que se assombra como grave em um país onde sistematicamente viola os
direitos humanos no campo penal.
Além do que é princípio
vigente e coerente de Direitos Humanos que toda pessoa tem direito a receber
dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os
direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.
Ressalte-se ainda que o Brasil
se vinculou expressamente perante aos órgãos internacionais de defesa e
proteção dos direitos humanos de garantir o remédio efetivo para os atos
violadores de direitos fundamentais, tal como prescreve explicitamente a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos, especialmente em seu artigo 25,
que impõe ao Estado que seja parte de desenvolver as possibilidades de recurso
judicial.
E não basta o que está
previsto na Constituição e na lei e com que seja formalmente admissível, sem
que se requerer que seja realmente idôneo para estabelecer quando ocorrido a
violação dos direitos humanos.
Ainda que deixássemos
esquecidos os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, a nossa Constituição
vigente, em seu artigo 5º,2º§ prevê que
os direitos e garantias expressos nesta Constituição excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados.
Aliás, cumpre assinalar que a
origem dessa menção legislativa remonta ao artigo 78 da Constituição brasileira
de 1891, e foi inspirada na Emenda IX da Constituição dos Estados Unidos da
América, a qual foi estabelecida segundo comentadores, como adequada cautela
contra a má aplicação da máxima demasiado repetida, que uma afirmação em casos
particulares importa uma negação em todos os mais e vice-versa.
Ressaltando-se ainda que o
texto constitucional vigente alerta que os direitos e garantias pertencem aos
indivíduos, aos cidadãos, ao povo, poder-se ia concluir ainda que outros
direitos e garantias não lhes são reconhecidos, visto não se acharem expressos
no texto constitucional.
Assim, a enumeração das
garantias não pode ser considerada como supressiva.
Adentrando ao túnel do tempo e
chegando à República Velha, é cediço que nos momentos mais críticos e
violentos, o habeas corpus foi o instrumento principal pelo qual se deu azo aos
duelos importantes entre os Poderes do então novo regime; além das lutas pelo respeito
aos direitos fundamentais por estes mesmos Poderes.
E, mesmo antes dos tempos
republicanos no Brasil, ainda no Império, o habeas corpus representou efetivo
instrumento na luta contra a escravidão, inclusive conforme ficou famosa a atuação
de Luiz Gama, que segundo Fábio Comparato: praticamente sozinho, logrou livrar
do cativeiro ilegal mais de quinhentos negros, fato sem precedentes na história
mundial da advocacia".
Valeu-se Gama, do habeas corpus em causa abolicionista
alegando a tese de vigência de Leis de 1818 e 1831 que proibiam a importação de
escravos e os reconheciam como livres.
Assim, o remédio heroico se
confirmou, também contra as prisões administrativas devido ao consentimento de
Dom Pedro II, consentimento que foi muito relevante para a estruturação inicial
das liberdades públicas no brasil.
E, no mesmo sentido, Pontes de
Miranda ressaltou que dista de muito a magna relevância do habeas corpus na vida nacional.
Se deixássemos de dar ao habeas corpus a extensão que lhe afeiçoaram a
Constituição de 1891, a de 1934 e a de 1946, a liberdade entre nós seria
ilusão, irrisória promessa em máximas de declaração de direitos inerme e
fictícia.
Assim, partindo da premissa de
que os recursos de estrito direito sejam mais relevantes do que habeas corpus no plano penal, significa,
minimamente, uma visão auspiciosa que tentar apagar o nosso passado.
Especialmente quando a interpretação ocorre num país absolutamente dependente
do remédio heroico, por força da ironia do destino, onde os próprios
expressivos números de impetrações assolam os Tribunais Superiores.
Concluímos que o Brasil em sua
jurisprudência contemporânea afronta toda a jurisprudência internacional de
Direitos Humanos, através do STF, particularmente a sua primeira turma, ao
ressuscitar preceito jurídico legado da ditadura militar que se valeu com o
propósito de anular os efeitos reais e práticos do habeas corpus.
Resignamo-nos do afrouxamento
da efetividade da jurisprudência pátria dos Tribunais Superiores pela obstrução
da via do habeas corpus substitutivo, ao contrário do que se sustenta, na verdade
estimulará a tendência de recrudescimento do autoritarismo dos Tribunais
inferiores, juízos e autoridades administrativas com atribuições no sistema
penal. Sendo o estímulo atendido, tornar-se-á crescente a tendência para o
cometimento de abusos e, como resultado, crescerá na mesma medida a necessidade
de recursos e de medidas judiciais.
Com essa jurisprudência
especialmente da primeira turma do STF, obteve-se o momentâneo alívio imediato
ao permitir a produção em massa de decisões extinguindo e arquivando-se as
impetrações substitutivas de recurso, sob a alegação de falta de cabimento.
Porém, a médio e longo prazo,
na prática, o processo penal cobrará com juros expressivos, pois tende a agravar
muito a crise já existente no sistema penal e especialmente no penitenciário.
A deterioração da função
jurisdicional culminou-se com o precedente que ganha materialidade e produz a
erosão da jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Sem dúvida que num Estado
Democrático de Direito, o habeas corpus tenha sua importância mitigada, a autorizar
o STF a reajustar seu cabimento de acordo com esta mudança constitui um
contrassenso. Mas ressaltou Calamandrei que a uma uniformidade interpretativa
contemporânea que não impede a diversidade sucessiva do direito, opinião
mencionada na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código de Processo Civil
de 1973.
O habeas corpus do século XXI tem sido um instrumento essencial e
vital na administração complexa da questão penal, e particularmente, a
penitenciária que abala o Brasil, e ainda envolve principalmente a população de
baixa renda, uma esmagadora vítima da pesada dívida social onde estamos
mergulhados apesar de recentes progressos sociais.
Assim, a cada ordem de habeas corpus concedido, tutelando
minimamente esta população oprimida significa uma despressurização da grande caldeira
penal e desumana que vive sempre à beira de explosão.
É o habeas corpus um instrumento hábil a permitir que o Judiciário
possa intervir diretamente na administração do problema, que é resultado de uma
sociedade injusta, servindo apenas para diminuir as chances de convulsões
sociais e outros conflitos intestinos mais graves dos que já existentes em
nosso pobre país.
Pontes Miranda ressaltou que a
função social por mais de século adotado no prazo, principalmente até 1930 e
entre 1934 e 1937, extraordinária função coordenadora e legalizante. O nobre
doutrinador alertou ainda que existia no Brasil uma minoria que explora, com
auxílio da ignorância, da força policial, da política, uma grande maioria de
indivíduos.
Assim só há três caminhos,
segundo Pontes de Miranda, a saber: a melhora da classe explorada, e então a classe
dominante se fletiria por se não haver preparado para novas condições sociais;
ou essa há de sugar aquela, até que aquela se enfraqueça e como que se extinga;
ou à medida que se operasse a melhora geral, aprenderia o explorador como
poderia ser mantida, sem contar com a população semiescrava, a situação social
de superioridade econômica (...).
Concluiu, com razão, o habeas corpus significa a alavanca
social, que manobrada pelo simples rábula dos sertões, ou pelo bacharel que
exerce, mais do que se pensa, pelo interior do país, a anônima e alta missão
civilizadora e renovante, faz cessar a violência do chefe local, ou dos agentes
do governo federal, ou estadual, mediante a ordem concedida originariamente ou
em grau de recurso, pelo Supremo Tribunal Federal.
Há uma enorme e pesada
responsabilidade nas mãos do STF pois parte de sua formação do século XXI
pretende renunciá-la sem justa causa alguma, mas apenas pelo aborrecimento
causado pelo excesso de impetrações do remédio heroico.
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