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quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Religião e Direito brasileiro

 



Religião e Direito brasileiro


 

Resumo: Trata-se de árdua tarefa separar a origem do Direito da religião, cogita-se até em secularização entre Direito e religião a partir do momento em que o Estado passou a ser laico. A religião católica influenciou a sociedade e continua influenciando mesmo que de  maneira menos abrangente  e consequentemente o Direito, que é fruto das relações  sociais.

A escola sociológica francesa de  Durkheim,  explicava que o Direito é  dependente da realidade social. Montesquieu, antes mesmo da escola de Durkheim,  sustentava essa dependência, encontrando na natureza das coisas a fonte última do  Direito. Assim como afirma o antigo brocardo ubi societas, ibi jus (onde está a  sociedade está o direito), sendo a recíproca também verdadeira ubi jus, ibi societas.

Palavras-chave: Religião. Estado de Direito. Constituição Federal brasileira de 1988. Liberdade religiosa.

 

 

A religião[1] pelas Constituições brasileiras desde a primeira que foi feita em 1824 e, estava inserida no pós-independência brasileira. E, deu-se grande confronto entre as principais forças da época. Tanto que em razão desse conflito de interesses

Dom Pedro I temendo perder o poder, dissolveu a Assembleia Constituinte e, convocou apenas alguns cidadãos conhecidos por ele e, a portas fechadas começou a redigir nossa primeira Constituição. O referido texto veio a estabelecer o governo pautado na monarquia hereditária e aplicar quatro poderes sendo estes o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, além do Moderador que era exercido pelo Imperador.

Destaque-se que a primeira constituição brasileira foi a que teve maior vigência no país, durou sessenta e cinco anos.

E, foi outorgada em nome da Santíssima Trindade trazia a religião católica romana com religião oficial, mas era permitido aos seguidores das demais religiões o culto doméstico. Vigeu no Império brasileiro a liberdade de crença, porém, sem a liberdade de culto.

E, na época só se reconhecia como livre o culto católico. Enquanto que as outras religiões deveriam se contentar com celebrar um culto doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo.

Assim, a Igreja Católica era a religião oficial do Império brasileiro, com todos os benefícios advindos dessa qualidade de Estado confessional e o na prática se alguém optasse por outra religião seria discriminado.

A segunda constituição brasileira foi a republicana e ocorreu em 1891 estava eivada da proteção aos interesses da elite latifundiária com destaque especial aos cafeicultores. Essa elite influenciava o eleitorado e ainda fraudava as eleições, quando impunha o célebre voto de cabresto.

A Constituição republicana estabeleceu uma república presidencialista, além de três poderes, a saber: o Executivo, legislativo e judiciário. Excluindo-se o poder moderador.

Deu-se mudança significativa quanto à questão religiosa pois os republicanos desvencilharam o Estado com a Igreja Católica. Foi um decreto de 1890 que fez que o país deixasse de ser um Estado Confessional para se tornar um estado laico.

Esse decreto representa marco na história no país, pois pela primeira vez o Brasil se via separado de religião oficial e, ainda permitia a liberdade de crença e de culto[2].

O artigo 2º preconizava a ampla liberdade de culto, enquanto os artigos 3º e 5º previam a liberdade de organização religiosa sem a intervenção do poder público.

A nova opção pela separação entre Igreja e Estado foi confirmada pela A primeira constituição republicana de 1891, consagrando o Estado Laico e a liberdade de religião. Ainda, não há menção a Deus em seu preâmbulo.

A terceira Constituição brasileira de 1934, seu contexto político estava incluído na chamada Era Vargas, onde Getúlio Vargas era o presidente. Aqui foi criado o voto secreto, o voto feminino, além da criação da Justiça do Trabalho e de Leis trabalhistas. Foi a Constituição com menor duração.

Eis que religião não foi afastada por completo e há menção a figura de Deus no preâmbulo da Constituição. Ainda, reconheceu a liberdade de culto desde que essa não contrariasse a ordem pública e os bons costumes.

A Constituição "Polaca" foi a quarta Constituição ocorreu três anos depois, em 1937, ainda inserida no contexto da Era Vargas. O que aconteceu aqui foi um Golpe de Estado. Como seu mandato terminava em 1938, Vargas para continuar no poder tornou-se um ditador em um período conhecido como Estado Novo.

Essa constituição tinha nítidas inspirações fascistas, era um regime ditatorial, perseguia opositores, o estado intervinha na economia,  havia a abolição de partidos políticos junto com a liberdade de imprensa.

Em comparação com a Constituição anterior, apresentou retrocessos em alguns temas ligados a religião. A quinta constituição ocorreu no ano de 1946. Ela nasceu no contexto de redemocratização do país.

Nesse cenário, Getúlio Vargas havia sido deposto e era de grande importância ter uma nova ordem constitucional pois o pais tinha se redemocratizado.

A Constituição brasileira de 1946 tentou conciliar a Justiça Social com o Estado Liberal[3], buscando resguardando a democracia. Manteve a proibição de a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabelecerem, subvencionarem ou embaraçarem cultos religiosos.

Não há previsão expressa de o Estado manter “relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja”, ao contrário da constituição anterior.

A Constituição de 1946 assegura o livre exercício dos cultos religiosos, sendo defeso os que contrariem a ordem pública ou os bons costumes.

Eis que as organizações religiosas adquirem a personalidade jurídica. Houve ainda inovações importantes quanto ao tema ao estabelecer a previsão da imunidade tributária, com relação a impostos, para tempos de qualquer culto. Há uma limitação a essa imunidade. Para que obtenham os templos devem aplicar suas rendas integralmente no país.

A Constituição de 1946 previu pioneiramente ainda a “escusa de consciência”, onde a lei poderia estabelecer obrigações alternativas àqueles que se recusassem a cumprir obrigações impostas por lei a todos os brasileiros.

Os cemitérios poderiam ser administrados pelos Municípios ou mantidos por entidades religiosas. As organizações religiosas poderiam praticar seus ritos, mesmos nos cemitérios seculares.

Também havia previsão da instituição de descansos remunerados, em dias de feriados religiosos. Previu-se a possibilidade de efeitos civis ao casamento religioso. Também há a previsão do ensino religioso facultativo.

A referida Constituição, portanto, consagrou o direito à liberdade de culto e ainda trouxe importantes novidades para implementar o exercício desse direito.

A Constituição brasileira de 1967 manteve praticamente a mesma orientação da Constituição anterior quanto à liberdade religiosa, inclusive a ressalva quanto à ordem pública e aos bons costumes.

A colaboração de interesse público referia-se expressamente aos setores educacional, assistencial e hospitalar. A novidade aqui era a dispensa dos eclesiásticos de participar do serviço militar obrigatório, o que demonstrou a disposição dos militares que ascenderam ao poder em formar uma força cada vez mais distante da moral religiosa cristã.

A Constituição brasileira de 1967, proíbe o Estado de estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos. Tendo porém a previsão expressa de colaboração entre o Estado e as organizações religiosas, no interesse público, especialmente nos setores educacional, assistencial e hospitalar.

São assegurados a liberdade de consciência e o exercício de cultos religiosos, desde que “não contrariem a ordem pública e os bons costumes”.

Há a previsão de assistência religiosa, prestada por brasileiros, às forças armadas e nos estabelecimentos de internação coletiva. Igualmente são assegurados o repouso remunerado, nos feriados religiosos; o casamento religioso de efeitos civis; o ensino religioso facultativo.

Mantém a previsão da imunidade tributária, no tocante aos impostos, dos “templos de qualquer culto”. A liberdade de culto também foi mantida.

Diante da tão esperada "Constituição cidadã" que foi intitulada assim por ter sido um marco para a cidadania e os direitos humanos. Igualmente, foi a primeira Constituição que contou com a participação efetiva da população durante o processo de aprovação das leis.

Dentro das principais mudanças dessa Constituição encontramos o capítulo sobre a Liberdade Religiosa onde alguns doutrinadores acreditam que seja o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos a sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e liberdades, em matéria religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico da liberdade religiosa.

Quanto à liberdade de crença, José Afonso da Silva afirma que ela compreende a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, e também a liberdade de não aderir a religião alguma, bem como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.

Não engloba, contudo, a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença, “pois aqui também a liberdade de alguém vai até onde não prejudique a liberdade dos outros”

In litteris, no art. 5º, VI, que:

   “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

VII - e assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;”

Ou seja, é evidente que a constituição ampliou essa liberdade e até prevê-lhe uma garantia específica.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi promulgada “sob a proteção de Deus”, como é possível verificar em seu preâmbulo.

Há uma grande discussão quanto a menção a Deus no preâmbulo da carta magna de 1988. Alguns doutrinadores defendem que contraria a liberdade religiosa.

Em verdade, Deus foi citado em todas as Constituições brasileiras. E, desde a primeira Constituição de 1824 até a atual e vigente Constituição de 1988, Deus é mencionado no preâmbulo da Constituição.

Há questões polêmicas relacionadas com a religião. É o caso de transfusão de sangue[4] em testemunha de Jeová que é um movimento adventista do século XIX na América. E, começou com um pregador batista leigo que em 1816 começou a proclamar que Cristo regressaria em 1843.

As testemunhas de Jeová[5] encaram a religião como modus vivendi, sendo que todos os outros interesses, incluindo o emprego e a família, giram em torno da adoração exclusiva que prestam a Jeová, o seu Deus.

Portanto, não importa o que façam, tudo deverá ser influenciado pela decisão e juramento que tomaram de dedicar a sua vida incondicionalmente ao Deus que adoram. A Bíblia para eles é um verdadeiro manual de aplicação prática e obrigatória em todos os campos da vida.

Dão grande importância à conduta baseada no que consideram ser elevados padrões morais que afirmam encontrar nesse livro que consideram sagrado. Têm profundo respeito pela santidade da vida e pelo sangue.

Enfim, por encararem o sangue como símbolo da vida e presente em vários versículos bíblicos, acreditam que Deus reclama como Seu o sangue de qualquer criatura, como representação de que a vida Lhe pertence.

Assim, não utilizam o sangue animal na alimentação nem o sangue humano, incluindo o seu próprio, em procedimentos médicos que envolvam o armazenamento ou transfusão. Essa afirmação encontraria respaldo nos seguintes textos bíblicos:  Gênesis 9:4.

Embora tivesse permitido que Noé e sua família passassem a se alimentar de carne animal após o Dilúvio, Deus os proibiu de comer o sangue. Ele disse a Noé: “Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer.”

Desde então, isso se aplica a todos os humanos, porque todos são descendentes de Noé. * Levítico 17:14. “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.”

Para Deus, a alma, ou vida, está no sangue e pertence a Ele. Embora essa lei tenha sido dada apenas à nação de Israel, ela mostra a importância que Deus dava a não comer sangue.

A não aceitação ao tratamento hemoterápico pode resultar na morte do paciente, pondo em confronto dois princípios garantidos constitucionalmente: o direito à liberdade religiosa e o direito à vida.

Conforme matéria do site do STJ em 29/03/2015 sobre o tema podemos entender o posicionamento do STJ:

“Fé é a certeza das coisas que se esperam e a convicção de fatos que não se veem (Hebreus 11:1). A crença religiosa dispensa lógica e razão. Quem crê, crê e pronto. É algo que, teoricamente, não se discute. Um direito fundamental reconhecido pela Constituição de 1988.

 O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, já encerrou muitas discussões envolvendo atos abusivos praticados sob o manto da religião. Um deles foi o julgamento do HC 268.459, que discutia a responsabilidade criminal de um casal pela morte da filha, de 13 anos.

A menina, portadora de anemia falciforme, foi levada ao hospital com uma crise de obstrução dos vasos sanguíneos. Alertados pelos médicos de que seria necessário realizar uma transfusão, os pais não autorizaram o procedimento invocando preceitos religiosos das Testemunhas de Jeová.

Em primeira instância, os pais foram pronunciados para ir a júri popular, acusados de homicídio com dolo eventual, decisão mantida em segunda instância.

No STJ, a Sexta Turma entendeu pelo trancamento da ação penal. Para o colegiado, os pais não poderiam ser responsabilizados porque, ainda que fossem contra o procedimento, não tinham o poder de impedi-lo, já que a menina estava internada. Os médicos é que deveriam ter agido e cumprido seu dever legal, mesmo diante da resistência da família.

O julgamento ficou empatado, e como nesses casos a regra é prevalecer a posição mais favorável, o habeas corpus foi concedido.

No acórdão, ficou registrado o entendimento de que a invocação religiosa deve ser indiferente aos médicos, que têm o dever de salvar a vida.”

TESTEMUNHA DE JEOVÁ – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE – EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA – TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – DIREITO À SAÚDE – DEVER DO ESTADO – RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – LIMINAR CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO. (TJMT REc-AL 22395/2006 – Cuiabá, 5ª Camara Cível, Relator

Desembargador Leônidas Duarte Monteiro, j. em 31.05.2006).

Adiante, seguem transcritos alguns trechos dessa decisão:

Para delimitar o âmbito deste apelo, impõe-se esclarecer que não se está a debater ética médica ou confrontação entre o direito à saúde e a obrigação de o Estado proporcionar ao cidadão tratamento médico que não implique em esgarçamento à sua liberdade de crença religiosa.(...)

O conflito não é entre direitos individuais do cidadão, mas entre o direito à liberdade religiosa e a obrigação e dever do Estado de garantir a saúde de todos, independente de crenças religiosas.

O que me importa bastante é a intransigência estatal em obrigar o recorrente a submeter-se a cirurgia que, pela técnica utilizada, ofenda os princípios religiosos dele.

(...) Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la (sic).

De acordo com o Código Civil Brasileiro, sem correspondência no Código Civil anterior, o artigo 15 diz que “ Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

De acordo com Leiria (2009) essa inovadora disposição legal tem aparência protetora dos direitos individuais, devendo ser lida como „ninguém, nem com risco de vida, será constrangido a tratamento médico ou intervenção cirúrgica?

Com efeito, se o médico acreditar na necessidade urgente de uma transfusão de sangue, é porque o paciente estará correndo risco de vida, o que impõe que nenhum procedimento seja realizado sem o seu prévio consentimento; ou, olhando a questão de outro ângulo, refira-se que a própria transfusão de sangue é, incontestavelmente, um tratamento de risco, seja pela insegurança e precariedade dos testes sorológicos efetuados, quer pelo desconhecimento do comportamento de vírus e outros agentes potencialmente patogênicos existentes eventualmente no material biológico a ser objeto da transfusão.

Quando se cogita que não existe religião oficial, porém, há a existência de feriados oficiais de caráter religioso. E, ainda há o caráter santo para apenas uma religião, como por exemplo, o dia da padroeira do Brasil e o dia dos finados.

Reconhece-se que não existe uma absoluta separação entre o Estado e a Religião, questiona-se se é constitucionalmente possível e permitido a existência de feriados religiosos. Esse é um questionamento atual realizado pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Mas, algumas atitudes da referida Igreja encontram-se envoltas em um manto de intolerância religiosa, sendo a discussão sobre a existência dos dias santificados encarada como uma "vingança" contra a imagem da padroeira do Brasil. Tal questionamento deveria ser feito no âmbito frio e racional da Constituição, sem o apelo a lutas religiosas, perseguições etc.

A separação entre Estado e religião é  limitada pelo exercício do poder de polícia do Estado e por outros poderes constitucionalmente atribuídos a este) e pelas práticas amplamente aceitas como símbolos ou tradições nacionais e que não seriam abolidas pela população mesmo que não gozassem de apoio estatal.

O Estado pode cooperar com as instituições religiosas na busca do interesse público (art. 19, I, da CF/1988), ou seja, ele não pode manter relações de dependência ou aliança, porém pode firmar convênios com as entidades religiosas quando tais convênios atendam ao interesse público (e não ao interesse dos governantes). Aliás, pode e deve ter tal postura.

A experiência judicial americana nos mostra como é difícil delimitar até onde é constitucionalmente possível e permitido a cooperação entre Estado e religiões.

Vários casos foram levados às Cortes americanas com relação à leitura da Bíblia (Velho Testamento-sem comentários) em sala de aula, com relação ao pagamento pelo Estado do ônibus escolar em Escolas Católicas, com relação ao planejamento das aulas na Escola Pública para que se abra um espaço para o ensino religioso, com relação à distribuição de Bíblias com o Novo e o Velho Testamento nas escolas, com relação ao descanso semanal. Todas as decisões foram tomadas por uma estreita margem de votos, o que demonstra a enorme polêmica que envolve o assunto.

Nossa jurisprudência sobre o tema ainda está progredindo lentamente, podendo ser citados os seguintes precedentes:

Em 1949, foi impetrado no Pretório Excelso o Mandado de Segurança que recebeu o n. 1.114. Nesse Mandado um bispo dissidente da Igreja Católica Apostólica Romana requeria o amparo do Judiciário no sentido de evitar que o executivo impedisse "as manifestações externas, quais procissões, missas campais, cerimônias em edifícios abertos ao público etc.," de sua Igreja, quando praticadas com as mesmas vestes e seguindo o mesmo rito da Igreja Católica Apostólica Romana.

O STF[6] manifestou-se contrário à pretensão do impetrante, fulminando com essa decisão a acalentada separação entre Estado e Igreja. Esta decisão deixa claro como é extremamente difícil a prática do "jogo democrático religioso", ou seja, se na teoria a separação Estado-Igreja já estava bem delimitada (desde 1890), na prática essa separação ainda era feita por linhas muito tênues.

É de se salientar, aliás, que a situação da Igreja Católica Apostólica Romana, separada do Estado, se tornou muito melhor. Cresceu ela, ganhou prestígio, graças à emancipação do regalismo que a subjugava durante o Império.

Foi durante o Império que se proibiu a entrada de noviços nas ordens religiosas; foi durante o Império que se verificou a luta entre maçons e católicos, de que resultou a deplorável prisão dos Bispos D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira e D. Macedo Costa, bispos de Olinda e do Pará. Mas não nos esqueçamos do próprio cisma, provocado, no século XIV, pelos cardeais rebeldes, em que se elegeu o antipapa Clemente VII. Assim, a História da Igreja está repleta desses cismas, está repleta desses delitos contra a fé. Trata-se pois, de delito contra a fé, como o classificam os canonistas...

O ex-bispo de Maura, D. Carlos Costa, não quer reconhecer o primado do Pontífice Romano, quer constituir uma Igreja Nacional, uma Igreja Católica Apostólica Brasileira com o mesmo culto católico. É-lhe lícito exercer esse culto, no exercício da liberdade outorgada pela Constituição no artigo 14, parágrafo 7º, liberdade cuja perturbação é, de modo preciso, proibida pela Constituição, no artigo 31, inciso II.

Trata-se, pois, de delito espiritual, podemos admitir. Como resolver um delito espiritual, um conflito espiritual, com a intervenção do poder temporal, do poder civil, que está separado da Igreja?

Os delitos espirituais punem-se com as sanções espirituais; os conflitos espirituais resolvem-se dentro das próprias Igrejas; não é lícito que essas Igrejas recorram ao prestígio do poder para resolver seus cismas, para dominar suas dissidências.

É este princípio fundamental da política republicana, este princípio da liberdade de crença, que reclama a separação da Igreja do Estado e que importa, necessariamente, na liberdade do exercício do culto; é este princípio que me parece profundamente atingido pela aprovação de parecer do eminente e meu ilustre colega de Faculdade, Professor Haroldo Valadão. Assim sendo, Sr. Presidente, concedo o mandado.

Portanto, com exceção do Ministro Hahnemann Guimarães, o Supremo Tribunal Federal fez vistas grossas à necessária separação entre Estado e Igreja, desconsiderando o próprio texto constitucional, apegando-se a sentimentos individuais não amparados pela ordem jurídica.

A brasileira Suprema Corte foi novamente convocada a pronunciar-se na Representação n. 959-9 - PB (JSTJ-‘a, 89/251) aonde arguía-se a inconstitucionalidade da Lei n. 3.443, de 6.11.66 que exigia a prévia autorização da Secretaria da Segurança Pública do Estado da Paraíba para o funcionamento das Tendas, Terreiros e Centros de Umbanda.

O Ministro Francisco Rezek, à época Procurador da República, salientou em seu parecer que: "5. Em termos absolutos, nada existe na norma sob crivo, tanto em sua redação atual quanto, mesmo, na primitiva, que constitua embaraço aos cultos africanos, de modo a afrontar a garantia constitucional da liberdade religiosa.

6. No máximo, dar-se-ia por defensável a tese do embaraço relativo, e do consequente ultraje ao princípio da isonomia, à consideração de que as exigências da lei paraibana não se endereçam por igual, aos restantes cultos religiosos. Para tanto, porém, seria necessário que a conduta do legislador local parecesse abstrusa e inexplicável, o que, em verdade, não ocorre.

Pelo contrário, a quem quer que não se obstine em ignorar a realidade social, parecerão irrespondíveis os argumentos do digno Governador do Estado da Paraíba, à luz de cujo entendimento os cultos africanos ‘são destituídos de qualquer ordenamento escrito ou mesmo tradicionalmente preestabelecido.

Não contam com sacerdotes ou ministros instituídos por autoridades hierárquicas que os presidam ou dirijam, nem possuem templos propriamente ditos para a prática dos seus rituais.

Estes como textualmente esclarece a própria representação sub judice, se realizam separadamente, em terreiros, tendas ou Centros de Umbanda, entidades autônomas e independentes, nem sempre harmônicas nas suas práticas, fundadas por qualquer adepto daquelas seitas que se considere com poderes e qualidades sobrenaturais para criá-las.

Tais circunstâncias, agravadas pela ausência de qualquer ministro ou sacerdote, notória e formalmente constituído, comprometem o sentido da responsabilidade a ser assumida perante as autoridades públicas, no que concerne à boa ordem dos terreiros, tendas e Centros de Umbanda.

Quis, então, o legislador local, assegurar no Estado o funcionamento daqueles cultos, mediante o cumprimento de determinadas exigências, a serem atendidas pelos representantes dessas sociedades, que passariam, assim, a ter existência legal.

Essas exigências, feitas em garantia da ordem e da segurança pública, não podem constituir embaraço ao exercício do culto, no sentido constante do artigo 9º, II, da Constituição da República, tanto mais quanto a própria lei, no seu artigo 3º, determina expressamente que, autorizado o funcionamento do culto, nele a polícia não poderá intervir, a não ser por infração da lei penal que ali ocorra.’"

O Pretório Excelso furtou-se à análise do mérito da representação por entender que a mesma estaria prejudicada pela alteração sofrida no artigo 2º da Lei n. 3.443/66 pela Lei n. 3.895/1977.

Ocorre que a alteração mencionada não teve o condão de sanar a inconstitucionalidade existente.

Pela Lei n. 3.895, de 22 de março de 1977, "O funcionamento dos cultos de que trata a presente lei será, em cada caso, comunicado regularmente à Secretaria de Segurança Pública, através do órgão competente a que sejam filiados, comprovando-se o atendimento das seguintes condições preliminares: ...II-b) possuir licença de funcionamento de suas atividades religiosas, fornecida e renovada anualmente pela federação a que foi filiado".

Ora, somente os Terreiros, Tendas e Centros de Umbanda (Cultos Africanos) deveriam, pela mencionada lei, comunicar o seu funcionamento à Secretaria de Segurança Pública. Qual é o motivo desta discriminação?

É patente que tal exigência sendo feita exclusivamente aos Cultos Africanos fere o princípio da isonomia, não importando se a Secretaria de Segurança Pública não tenha mais que dar a sua autorização para que a entidade funcione.

O só fato dos Templos de uma determinada religião serem obrigados a comunicar o seu funcionamento à Secretaria de Segurança Pública e outros Templos de outra religião não serem obrigados a tal procedimento, já mostra um preconceito e um tratamento diferenciado totalmente injustificados.

A menção de que a discriminação foi feita em razão da "realidade social" é desprovida de conteúdo, não possuindo pertinência lógica com o próprio tratamento desigual. A expressão equivale a um "cheque em branco" a ser preenchido a gosto do sacador.

Quando o Supremo Tribunal se negou a apreciar a representação, por via oblíqua, julgou válida a discriminação, fazendo, novamente, tábula rasa de nossa Constituição.

No âmbito do Estado de São Paulo pode-se mencionar o Mandado de Segurança n. 13.405-0 (publicado na RJTJESP 134/370) impetrado contra ato do Presidente da Assembleia Legislativa que mandara retirar, sem oitiva do Plenário, crucifixo colocado na sala da Presidência da Assembleia.

O Tribunal entendeu, sem adentrar ao mérito do ato, ser matéria de "âmbito estritamente administrativo, constituindo, do, ademais, ato inócuo para violar o disposto no inciso VI do artigo 5º da Constituição da República".

Apenas ad argumentandum vale a transcrição de trecho do voto vencido do douto Desembargador Francis Davis que afirma que o "crucifixo existente na Presidência da Augusta Assembleia Legislativa é uma exteriorização dos caracteres do Povo de São Paulo. É a representação de um preâmbulo da própria Constituição deste Estado, outorgada com invocação da “proteção de Deus”[7].

É ainda, a exteriorização de um Povo que, como deve, cultua sua história, tendo sempre presente que o Brasil, desde o seu descobrimento, é o País da Cruz. Isto é, a Ilha da Vera Cruz, e depois, a Terra de Santa Cruz, indicação, em última análise, de um povo espiritualista, nunca materialista.

Cabe ao Senhor deputado impetrante defender, na Casa das Leis, esse símbolo representativo do Povo de São Paulo, que, ao elegê-lo, outorgou-lhe legitimidade bastante para a defesa, na Assembleia, dos predicados e interesse de São Paulo, dentre os quais seus caracteres religiosos (independentemente do credo individual) e histórico."

Com o devido respeito não creio ser esta a melhor interpretação a ser dada ao preceito constitucional que invoca a "proteção de Deus". Se é inegável a tradição cristã do povo brasileiro, também é inegável o crescimento de outras religiões que consideram a existência de crucifixos e imagens de santos uma "abominação". É difícil, hoje, precisar numericamente qual é a religião majoritária.

O que se pode afirmar, sem qualquer dúvida, é que existe uma parcela considerável da população que não segue mais a religião católica apostólica romana. Com base no nosso progresso constitucional, pode-se afirmar com segurança que o Estado não deve simplesmente "tolerar" a existência de outras religiões em seu território. Deve saber conviver com a multiplicidade de religiões existentes, tratando igualmente a todas.

A Constituição da República estabelece em seu artigo 210, parágrafo 1º que as escolas públicas de ensino fundamental deverão ter, obrigatoriamente, em seu curriculum, como matrícula facultativa porém dentro do horário normal de aulas, uma cadeira relacionada ao componente curricular ensino religioso.

Com a implementação do ensino religioso nas escolas públicas pode soar uma questão: qual seria o docente responsável pela cátedra desse componente curricular na educação básica?  a resposta seria simples dada que o curso superior responsável para a formação docente é o curso de Licenciatura plena em  Ciência da Religião onde na RESOLUÇÃO Nº 5, DE 28 DE DEZEMBRO DE 2018 em seu  art. 2º O curso de licenciatura em Ciências da Religião constitui-se como habilitação em nível de formação inicial para o exercício da docência do Ensino Religioso na Educação Básica.

No direito brasileiro[8] vigente( CF/1988):

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental[9].

Controle concentrado de constitucionalidade

A interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto são premissas básicas para a interpretação do ensino religioso de matrícula facultativa previsto na Constituição Federal, pois a matéria alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões. (...)

A singularidade da previsão constitucional de ensino religioso, de matrícula facultativa, observado o binômio Laicidade do Estado[10] (CF/1988, art. 19, I) Consagração da Liberdade religiosa (CF/1988, art. 5º, VI), implica regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo 210, §1º, autorizando à rede pública o oferecimento, em igualdade de condições (CF/1988, art. 5º, caput), de ensino confessional das diversas crenças.

A Constituição Federal vigente garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como história, filosofia ou ciência das religiões.

O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em detrimento dos demais.

Ação direta julgada improcedente, declarando-se a constitucionalidade dos artigos 33, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 9.394/1996, e do art. 11, § 1º, do Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, e afirmando-se a constitucionalidade do ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. [ADI 4.439, red. do ac. min. Alexandre de Moraes, j. 27.9.2017, P, DJE de 21.6.2018].

§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

A religião exerce influência sobre o Direito. Alguns comportamentos são considerados lícitos ou ilícitos com base em premissas religiosas. Entre os escolásticos, Direito e Religião, “se misturavam”. O aborto[11] é criminalizado em muitos países com base em dogmas da Religião.

A Religião e o Poder sempre andaram juntos durante a História da Humanidade. Alguns povos e culturas usavam e ainda usam até hoje a religião como modelo de conduta e de vida social[12].

Segundo a obra de F. de Coulanges, as mais antigas gerações, antes mesmo de existir filósofos, creram numa segunda existência depois desta. Elas encararam a morte como uma simples mudança de vida e não como dissolução do ser.

A liberdade religiosa[13] tratada na Constituição Federal de 1988 constitui um importante avanço democrático que visa garantir o direito do cidadão de acreditar ou desacreditar do que lhe convier.

 

 

Referências

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GOMES, Laurentino. 1808. 1ª Ed., São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 1999

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Tradução de Fernando  Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LEIRIA, Cláudio da Silva. Transfusões de sangue contra a vontade de paciente da religião Testemunhas de Jeová. Uma gravíssima violação de direitos humanos. Jus Navigandi, Teresina, ano 14 (/revista/edicoes/2009), n. 2100 (/revista /edicoes/ 2009/4/1), 1 (/revista/edicoes/2009/4/1) abr. (/revista/edicoes/2009/4) 2009 (/revista/ edicoes/2009) . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/12561>. Acesso em: 14.8.2024.

SCALQUETTE, Rodrigo Arnoni. História do Direito - Perspectivas Histórico-constitucionais da Relação Entre Estado e Religião, 2012.

REALE, Miguel. O Código Civil e as Igrejas. Revista Veja: Editora Abril, Ed 2111, ano 42, n° 18, 6 de maio de 2009.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2ªed., São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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RAMOS, Marcelo Maciel. Ética grega e cristianismo na cultura  jurídica do Ocidente. 2007. Dissertação (Mestrado em Direito)  – Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais  (UFMG), Belo Horizonte. 2007

 



[1] Religião é também um conjunto de princípios, crenças e práticas de doutrinas religiosas, baseadas em livros sagrados, que unem seus seguidores numa mesma comunidade moral, chamada Igreja. A palavra "religião" deriva do latim religare, religar, voltar a ligar. Só se pode falar em religião, estritamente, quando aparece uma organização complexa, espiritual e social, com base numa revelação de Deus.

[2] A liberdade de crença, por sua vez, é contextualizada no plano da fé, que pode ser livremente escolhida e professada, sem qualquer interferência do Estado ou de outros particulares. Como limite, tem-se a necessidade de resguardar a ordem pública e assegurar igual liberdade aos demais componentes do grupamento, que não podem ser compelidos a violentar a sua consciência e a professar fé alheia. A preocupação com a preservação da ordem pública, aliás, remonta à célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 10). A liberdade de crença pode ser concebida como a face intrínseca da liberdade religiosa, afeta à intimidade do ser humano, enquanto a liberdade de culto é a sua face extrínseca, momento em que ocorre a exteriorização da fé.

[3] Estado liberal (ou Estado liberal de direito) é um modelo de governo baseado no liberalismo desenvolvido durante o Iluminismo, entre os séculos XVII e XVIII. O liberalismo se opôs ao governo controlador e centralizador do Estado absolutista, que tinha como principais características o acúmulo de riquezas, o controle da economia e uma relação de autoritarismo entre o governo e o povo. O Estado liberal, também chamado de Estado liberal de direito, é voltado para a valorização da autonomia e para proteção dos direitos dos indivíduos, garantindo-lhes a liberdade de fazer o que desejarem desde que isso não viole o direito de outros.

[4] A maioria dos juristas e médicos ainda tem no direito à vida um posicionamento dominante diante de risco de morte. Esse posicionamento é o reflexo das relações humanas. Porém, o atual momento vivido, reflete o amadurecimento do homem e com este amadurecimento o princípio da dignidade humana ganha destaque e tem se difundido nas mais diversas formas de relacionamento como princípio fundante. Juristas renomados como Álvaro de Azevedo (2010) e Nelson Nery Junior (2009) já se posicionaram em pareceres demonstrando o quanto o princípio da dignidade humana fundamenta todo o direito a elas garantido. O consentimento livre e esclarecido está ganhando destaque na prática médico-paciente. Bem como a divulgação das diretivas antecipadas, onde as Testemunhas de Jeová antecipadamente, através de documentos válidos, apresentam sua vontade.

[5] Existe uma corrente contrária que defende a vida como um direito fundamental garantida constitucionalmente como bem inviolável, devendo o Estado defendê-la a qualquer custo. Neste aspecto e com base no juramento de Hipócrates alguns médicos entendem que diante do risco de morte a transfusão sanguínea deve ser realizada. O Código Penal(CP) em seu art. 146, § 3º inciso I, prescreve que não configura o delito de constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. Neste aspecto, Lenza (apud SANTOS; DUARTE 2011 p. 2), complementa: (...) se estiver o médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, pois, fazendo uma ponderação de interesses, não pode o direito à vida ser suplantado diante da liberdade de crença, até porque, a Constituição não ampara ou incentiva atos contrários à vida.

[6] Repercussão Geral

Tema 386 - Nos termos do artigo 5º, VIII, da Constituição Federal é possível a realização de etapas de concurso público em datas e horários distintos dos previstos em edital, por candidato que invoca escusa de consciência por motivo de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, a preservação da igualdade entre todos os candidatos e que não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.

Tema 1021 - Nos termos do artigo 5º, VIII, da Constituição Federal é possível à Administração Pública, inclusive durante o estágio probatório, estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais inerentes aos cargos públicos, em face de servidores que invocam escusa de consciência por motivos de crença religiosa, desde que presentes a razoabilidade da alteração, não se caracterize o desvirtuamento do exercício de suas funções e não acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira fundamentada.

[7] O direito muçulmano não engloba apenas os deveres e direitos da vida civil, mas também os da vida religiosa. Trata-se de um regramento que rege o comportamento do homem, não como cidadão, mas como um ser de Deus. Para o muçulmano, a verdadeira sanção por infringir uma regra é o pecado e suas consequências. Em Estados muçulmanos4, o direito islâmico pode ser adotado como oficial. Isso ocorre de modo diverso entre as nações que atualmente admitem a aplicação da Lei Sharia. Em alguns, o direito islâmico é uma entre outras fontes estatais. Em outros - de modo mais raro (como a Arábia Saudita) -, todo o direito é islâmico: não haveria, em princípio, legislação, pois o direito islâmico é aplicado diretamente para todas as questões. Nos Estados não muçulmanos, o Poder Público poderá ter de lidar com problemas decorrentes de um ordenamento jurídico paralelo vigente de fato, cultivado por minorias muçulmanas em seu território.

 

[8] A Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003, Estatuto do Idoso, traz em seu artigo 17 que: “ Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais é assegurado o direito de optar pelo tratamento de saúde que lhe for reputado mais favorável(caput).” É evidente que ao paciente que esteja consciente, independente do seu estado de saúde, deve ser esclarecido pelo médico quanto ao seu tratamento e somente após o devido esclarecimento manifestar sua vontade. O médico nesta situação não pode agir sozinho. Deve colher o consentimento do paciente idoso. Outro ponto em que se pode encontrar claramente positivado o consentimento informado é na Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos (Lei n.º 9.434/97). Segue transcrição do artigo 10.

Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 1º Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida da sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

[9] Ação direta de inconstitucionalidade – manutenção obrigatória de exemplares da Bíblia Sagrada nas unidades escolares da rede estadual de ensino e nos acervos das bibliotecas públicas – violação dos princípios  da liberdade religiosa e da laicidade estatal "2. A laicidade estatal, longe de impedir a relação do Estado com as religiões, impõe a observância, pelo Estado, do postulado da imparcialidade (ou neutralidade) frente à pluralidade de crenças e orientações religiosas e não religiosas da população brasileira. 3. Viola os princípios da isonomia, da liberdade religiosa e da laicidade estatal dispositivos legais que tornam obrigatória a manutenção de exemplares da Bíblia Sagrada nas unidades escolares da rede estadual de ensino e nos acervos das bibliotecas públicas, às custas dos cofres públicos.” ADI 5256/MS.

[10] É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

[11] Em decisão liminar (provisória) em 17 de maio de 2024, o ministro determinou que a resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), que proíbe médicos de realizarem a assistolia fetal [interromper os batimentos cardíacos do feto] em estações com mais de 22 semanas decorrentes de estupro, fosse suspensa. O aborto é legalizado no Brasil só quando há risco à vida materna, em casos de estupro e de gestação de feto anencéfalo. O artigo 128 do CP (Código Penal), que autoriza o procedimento, não impõe limite de idade gestacional. No entanto, os artigos 124 e 126 do CP determinam pena de 1 a 3 anos para a mulher que fez o aborto ilegal e de 1 a 4 anos de prisão para médicos que realizem o procedimento....

[12] Nesse processo de construção do Estado laico, há avanços e recuos. Aqui vão dois exemplos. Primeiro, dois exemplos de avanço seguido de recuo. A Constituição Republicana de 1891 determinava que fosse laico o ensino ministrado nas escolas públicas, mas a aliança do Governo Vargas com a Igreja Católica fez com que o ensino religioso voltasse às escolas públicas, mediante decreto, em 1931, e por determinação constitucional, em 1934. Desde então, todas as constituições preveem o ensino religioso nas escolas públicas, um retrocesso. Vamos a outro. As duas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961 e 1996) foram promulgadas com uma cláusula que proibia o uso de recursos públicos para o ensino religioso nas escolas públicas – um avanço na direção da laicidade do Estado. Mas, essa cláusula foi retirada das duas leis, pelo mesmo Congresso que as promulgara, por causa da pressão da Igreja Católica – outro recuo na laicidade. Agora, um exemplo de avanço da laicidade do Estado, este bem consolidado. Apesar da longa e sistemática oposição do clero da Igreja Católica contra a possibilidade legal de dissolução do vínculo conjugal, o divórcio foi instituído, por lei do Congresso Nacional, em 1977. Neste caso, a moral coletiva foi retirada da tutela religiosa, portanto, houve um avanço no processo de laicização do Estado que refletiu a secularização da Sociedade.

[13] A liberdade religiosa deve ser necessariamente balanceada pelos referenciais de pluralismo, igualdade e tolerância, o que assegura a coexistência das distintas formas de manifestação da espiritualidade, a ausência de posições de preeminência perante a ordem jurídica e a garantia de que todas essas manifestações podem se expandir livremente, sem qualquer censura. Em relação ao caráter laico do Estado, observa-se que ele não chega ao extremo de desconsiderar a identidade cultural e as tradições da sociedade, o que autoriza a utilização de símbolos, como o crucifixo, ou a utilização do nome de Deus em documentos oficiais, como o papel moeda, situação que deve perdurar enquanto não difundido um sentimento de discriminação no âmbito das demais religiões.