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quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Argumentação jurídica de Robert Alexy nos processos criminais.

 

 

Argumentação jurídica de Robert Alexy nos processos criminais.

 


Abordar o tema sobre a evolução da argumentação jurídica implica necessariamente irmos até  a Grécia Antiga, o berço da democracia ocidental. Lembrando que os gregos eram avessos à tirania, onde os conflitos eram dirimidos por meio da violência e pelo uso  da força. Igualmente os gregos valoraram um relevante atributo humano que é a fala, daí terem enfatizado a  retórica.

Na mitologia grega era Peithó ou Peito a deusa da persuasão ou sedução que sempre andava junto com Afrodite e, daí derivou o verbo convencer que era atribuído a essa deusa da mitologia dotada de dons metafísicos do convencimento.  

Peitho, na mitologia grega, era a deusa da persuasão e da sedução. Ela era seguidora de Afrodite e, em algumas versões, era filha da deusa com um deus. Peitho casou-se com Hermes, o mensageiro dos deuses

Um marco antropológico se estabeleceram sobre três estatutos da palavra na Grécia, na democracia da palavra é de todos, no meio da ágora, pertence ao mais hábil e ao melhor preparado, que é peitho, a arte da persuasão.

Nota-se um destronamento do pensamento mítico em busca do pensamento racional, mas de outra perspectiva epistemológica é mencionado Georges Gusdorf, que afirma que nos gregos a coexistência de discursos racionais e míticos não implica tensões ou conflitos e que propõe que se leia os mitos como sistemas de representação e não como estágios históricos.

A retórica como a arte do uso da palavra falada era muito usada como instrumento de deliberação popular sobre diversos assuntos, como política, impostos, solução de lides judiciais cíveis e até condenações criminais, e não raras vezes alguns cidadãos eram chamados a expor as razões de seus votos.

Quando adentrarmos no século XX, aí  sim o termo argumentação terá um uso mais forte, pois valerá não só para a  formação do convencimento e justificação escrita, como também falada.

O nascimento histórico da Retórica é costumeiramente localizado no  século V antes de Cristo, em Siracusa, na Magna Grécia, onde hoje  é a Itália. Após a queda do tirano Trasíbulo, sucederam-se inúmeras  causas para a restituição, aos legítimos proprietários, das terras que  o tirano lhes havia subtraído.

Desde suas origens, está, portanto, a  Retórica indissociavelmente ligada ao Direito, no aspecto que  Aristóteles mais tarde chamará de "gênero judicial" do discurso  retórico.

O primeiro tratado de Retórica, naturalmente rudimentar, foi  escrito em 465 a.c. por Tísias e Córax, dois oradores que se  notabilizaram na defesa das vítimas dos arbítrios cometidos pelo  tirano de Siracusa.

A Retórica só se desenvolveu plenamente, no  entanto, após a consolidação da democracia ateniense. Todos os  cidadãos atenienses participavam diretamente nas assembleias  populares, que possuíam funções legislativas, executivas e  judiciárias.

Destacou-se o filósofo Aristóteles com a obra intitulada Retórica onde defendeu a clareza como expressão máxima de um bom discurso.

O orador deve falar com naturalidade, usar de figuras de linguagem e analogias a fim do discurso não parecer monótono e pobre, não se valer de vulgaridades e outras iniquidades que pudessem maculá-lo. Assim, falar de modo claro com ritmo, elegância e expressões adequadas a cada gênero discursivo são aspectos formais essenciais ao retórico. Tudo isso enaltece a verdade das palavras do orador.

Na obra "Retórica" o filósofo destaca três tipos de discursos,

1) o judicial, onde se resolvem as questões passadas, cujos atos em regra eram acusar  ou defender, destinados aos juízes e os valores eram o que era justo ou injusto,  principalmente baseados os argumentos no sistema dedutivo;

2) o deliberativo, onde  se discutiam as questões políticas dirigidas à assembleia, portanto, voltadas mais ao  futuro, cujos atos eram de aconselhamento ou dissuasão, com valores apreciados  sob a ótica da utilidade e nocividade, geralmente baseados em argumentos indutivos  e;

3) o demonstrativo (ou epidítico), que tinha como destinatário o espectador e discutiam-se assuntos do presente, geralmente em cerimônias solenes ou em praça  pública com atos de louvor ou censura sobre o que era nobre ou vil, ético ou  antiético, belo ou feio, em regra valendo-se de recursos de amplificação. 

A retórica é útil porque o verdadeiro e o justo têm naturalmente mais valor do que seus opostos. O resultado é que se os julgamentos não  forem proferidos como devem ser, o verdadeiro e o justo estarão  necessariamente comprometidos, resultado censurável a ser  atribuído aos próprios oradores.

(...) Além disso, é necessário estar  capacitado a empregar a persuasão, tal como os silogismos podem  ser empregados, nos lados opostos de uma questão, não para nos  dedicarmos indiscriminadamente a ambas as operações (uma vez  que não devemos levar as pessoas a crer no que é incorreto),  mas para que possamos ver com clareza o que são os fatos e, no  caso de outrem argumentar sem justeza, sermos capazes de destruir  sua argumentação.

A persuasão estava vinculada a três provas  técnicas da retórica: a) o caráter do orador; b) as disposições em que se colocam os ouvintes; c) o próprio discurso.

Podemos ver, portanto, que essa sistematização do pensamento acerca das técnicas de argumentação foi muito importante para o aprofundamento da disciplina, uma vez que essas ideias poderiam ser levadas adiante, como de fato ocorreu em seguida no império romano e nos acompanha até hoje.

Embora a contribuição dos gregos tenha sido fundamental, foi, no entanto, pelas mãos dos romanos que a doutrina da retórica se difundiu pelo mundo afora acompanhando a expansão do império romano, sendo fixada institucionalmente na educação e transmitida e retransmitida até a idade média em  especial através das obras de Cícero (106-43 a.C).

Dos três elementos da arte (dons naturais, técnica e prática), e 2. das partes do discurso – 2.1. inventio (os argumentos), dispositivo (a ordem dos argumentos), elocutio (a ornamentação com  recursos estilísticos), memória (a memorização do discurso) e actio (a gesticulação e a dicção), e 2.2. dos sentimentos que devem ser incentivados na audiência – conciliare (como atrair o público), probare (como persuadir com argumentos) e movere (como  emocionar os ouvintes).

Sêneca expõe com maestria a discussão sobre a  amizade, fundamentando bem o porquê de seu cultivo, e usa na segunda metade do  trecho a argumentação com a técnica da comparação com o amor, para melhor  ilustrar seu raciocínio e reforçar a ideia de que ambos, amor e amizade, devem ser  indiferentes a interesses espúrios.

Foi com Quintiliano (35-95 d.C) que a  retórica e argumentação ganharam um sopro de vida quando parecia já relegada em  segundo plano, conseguindo ele sistematizar o pensamento de Cícero em conjunto  com toda a tradição grega até então produzida, que resultou em sua obra “Institutos  de Oratória” (Institutio Oratoria), que foi dividida em doze livros, sendo o Livro X um  dos mais importantes, onde ele elenca um rol de autores gregos e latinos que seriam  fundamentais para a formação de um bom orador. 

A obra “Retórica a Herênio” (durante muito tempo foi atribuída a Cícero, mas ainda há dúvidas sobre quem seja verdadeiro autor) entra  em cena como o mais importante escrito sobre o tema que influenciou os  pensadores medievais:

É dividida em quatro livros: 1) o ofício do orador, as partes do  discurso e os gêneros da narração; 2) os gêneros das causas que  movem o orador, as constituições legais, as partes do direito e da  argumentação; 3) os gêneros, a disposição e a pronunciação, a  configuração da voz e a memória, e 4) a elocução, suas figuras e  comodidades.

Nessa estrutura, a Retórica a Herênio inova:  acrescenta a memória às costumeiras fases de elaboração do  discurso – se entenda memória como a capacidade do orador de  recordar os temas e a ordem de seu discurso com determinadas  técnicas aprendidas com a retórica.

Nesta obra o que a diferencia das outras de sua época é a inovação  com o acréscimo da memória às costumeiras frases de elaboração do discurso.  Embora se dedique a todas as virtudes do orador, a obra dá especial atenção à  correção e à clareza do discurso.

Verificou-se que a retórica passou por diversas mudanças  desde a era da filosofia clássica grega, em especial no período aristotélico, onde  pregava-se um enaltecimento da persuasão.

Logo adiante será demonstrado que na  idade média este estilo retórico sofreu diversas mudanças, em especial a diminuição  significativa do caráter persuasivo, para adotar mais uma linha voltada à religião  (discursos de cunho moral e pregações de censura a determinados  comportamentos).

O que predominou na era medieval foram as narrativas epidíticas ou  descritivas, pois como ênfase era na poética, essa forma de discurso era favorecida  por este estilo:

O discurso epiditíco foi, indubitavelmente, o que mais inspirou a  poesia medieval, já que seu intuito primordial é o elogio. Segundo a  enumeração de Curtius (1996), vários são os objetos que foram  elogiados: “deuses, homens, países, cidades, animais, plantas  (loureiro, oliveira, roseira), estações do ano, virtudes, artes e  profissões.” (CURTIUS, 1996).

A extensão dos temas  laudatórios demonstra que a retórica epidítica estava intimamente  ligada à poesia, pois esta favorece os grandes louvores

Cogitando de Idade Média, filosofia e retórica implica falar de Santo  Agostinho (345-430), pois:  “Ele se valeu da retórica em várias passagens de sua monumental  obra A cidade de Deus (c. 412-426), quando explicou e interpretou  textos (especialmente a Bíblia). Por exemplo, quando discorreu sobre  o sentido do descanso de Deus no sétimo dia da criação [que deve  ser compreendido como uma figura de linguagem – “o repouso de  Deus significa o repouso dos que n’Ele descansam, assim como a  alegria de uma casa significa a alegria dos que nela se alegram” (XI,  8)]; quando abordou a essência de Deus e a ordenação das  naturezas segundo os graus de Sua essência e o sopro divino na  alma (XIII, 11 e 24); quando analisou o sentido de amor e de afeição  e as perturbações na alma do sábio estoico (XIV, 7 e 8); quando  discorreu sobre o amor da cidade de Deus e o amor da cidade dos homens (que nada mais é, para ele, do que o amor pelos corpos das  mulheres) (XV, 22)”.

Santo Agostinho desenvolveu seu trabalho sempre tendo como elemento basilar da argumentação o conhecimento e, seguindo os passos de seu mestre  Platão, em quem se inspirou profundamente, deixou escrito em seus textos sua  preocupação que a retórica viesse a ser utilizada, como os sofistas o fizeram, fora  dos valores que pregava, que era o bem e o amor:

Finalmente, se alguém for incapaz de falar ao mesmo tempo com  sabedoria e eloquência, que diga ao menos com sabedoria o que  não consegue dizer com eloquência, de preferência a dizer  eloquentemente coisas tolas.

Todavia, quem não é sequer capaz de  fazer isso, deve se comportar de tal maneira para não somente  conseguir a recompensa para si, mas também para dar o exemplo ao  outros, tornando seu modo de viver uma espécie de eloquente  pregação.

Voltada à retórica religiosa na idade média, com grandes oscilações no seu valor ao longo de quase mil anos (restou um pouco  desvalorizada no início da idade média, mas ganhou fôlego após algum tempo,  principalmente depois de Santo Agostinho), no renascimento inicia novo ciclo de  declínio.

As novas ideias vão dar-lhe um golpe mortal, rompendo o elo entre a arte  a argumentação racional (dialética) e a oratória, que lhe davam força e valor.

A partir do século XVII ou XVIII, a retórica é posta a serviço do poder  pontifício e das monarquias. A aristocracia fará dela um instrumento  de distinção social, o que, em conjunto com a disseminação do  método científico e a relevância dada à verdade científica  (Positivismo), leva ao declínio, que se manterá no século XIX – com  a sua rejeição pelos românticos em nome do enaltecimento da  sinceridade –, e em grande parte do século XX.

A retórica e a teoria da argumentação, desde sua sistematização por  Aristóteles, sofreram diversos altos e baixos ao longo do tempo. No Renascimento,  com o afastamento maior das pessoas em ralação à religião, o aumento do senso  crítico de todos, que passam a questionar antigos dogmas que antes eram impostos  apenas com base na coerção e outrora na fé, a palavra escrita e falada assumiu um  papel de instrumento de proteção do cidadão em face do Estado e de mudança de  paradigma na forma de solução dos problemas, que costumeiramente eram feitos à  força, com subjugação e passou a predominar a razão, a lógica e a civilidade.

O movimento de intensa positivação do Direito, mormente após  o Código Civil francês de 1804, onde buscou-se maior segurança jurídica com o  Direito escrito, na tentativa de minimizar o arbítrio do aplicador das normas com a  subsunção entre o que fora previsto abstratamente na lei e o caso em concreto.

Ocorre que a experiência mostra que o Direito positivado não consegue  prever todas as possibilidades de problemas possíveis de ocorrerem; a norma  escrita sempre está um passo atrás da dinâmica da vida em sociedade.

Fora esse delay legislativo, existe o problema de eventual precariedade na linguagem exposta na norma acaso existente, o que redundará em maior  margem discricionária para interpretação e, via de consequência, o aumento dos  riscos que se buscou reduzir com a codificação.

Robert Alexy, considerado um dos principais autores da linha pós positivista de viés procedimentalista, é fundamental para entender o caráter  legitimador da argumentação jurídica, tanto no que diz respeito à validade das  normas jurídicas, quanto no papel do direito como ferramenta de resolução dos  conflitos sociais.

Daí porque Alexy, após dizer que invariavelmente a decisão jurídica  “não se segue logicamente das formulações das normas jurídicas que se supõem  vigentes”.

Propõe o doutrinador quatro motivos para tal:   (1) a imprecisão da linguagem do Direito, (2) a possibilidade de  conflitos entre as normas, (3) a possibilidade de haver casos que  requeiram uma regulamentação jurídica, uma vez que não cabem em  nenhuma norma válida existente, bem como (4) a possibilidade, em  casos especiais, de uma decisão que contraria a literalidade da  norma.”

Diante desses problemas é que a metodologia jurídica entra para  apaziguar os ânimos e tentar fornecer as regras e procedimentos para orientar a boa  formação das decisões jurídicas, sendo os chamados “cânones de interpretação”  os meios mais comuns para essa tarefa.

No entanto, os cânones mais conhecidos (método filológico, lógico,  sistemático, histórico e outros) apresentam um problema: a depender de qual deles  é usado, a solução da controvérsia pode ser muito diferente entre eles.

Assim, um  uso metodológico e científico desse sistema necessita de uma prévia ordenação  preferencial entre eles ou uma hierarquia, celeuma este que a ciência jurídica ainda  não apontou a solução.

Alexy traz interessante exemplo ao mencionar que determinada regra  que prescreva que a interpretação da norma deve ser dada conforme ela cumpra  seu objetivo, pode ter sentidos totalmente opostos, caso os intérpretes tenham  opinião diferentes sobre o objetivo dela.

A subsunção do fato à norma não considera necessariamente a  valoração do aplicador. E a valoração, inquestionavelmente, está presente em  qualquer aplicação de lei, até mesmo nos casos claros, onde os argumentos  contrários à tese que sustenta a clareza sofrem o juízo de valor negativo, como não  aplicáveis à hipótese, justamente pela evidência dos outros.

E, não é difícil verificar a  existência de diversos casos em que o mero silogismo não é suficiente para a  justificação da decisão:

Alexy identifica que as decisões jurídicas possuem dois padrões de  justificação: uma justificação interna, na qual se liga as premissas  extraídas do ordenamento jurídico ao resultado, e uma justificação  externa, que sustenta fundamentadamente as premissas utilizadas  na justificação interna.

A justificação interna costuma estar associada  ao silogismo, mas também faz parte dela, no caso da teoria de Alexy,  a estrutura da fórmula da proporcionalidade, quando esta for  necessária à decisão. A teoria da argumentação jurídica e suas  regras são voltadas para a justificação externa.

Na obra “Teoria da Argumentação Jurídica”, Robert Alexy explica que se  trata de justificação interna quando a análise é se “a decisão se segue logicamente  das premissas que se expõem como fundamentação; e o objeto da justificação  externa é a correção destas premissas

Alexy bem coloca a necessidade de se discutir metodológica e  cientificamente a questão da valoração e da argumentação jurídica. Aponta o autor  que:  “A resposta a essas perguntas é de grande importância teórica e  prática.

Dela depende, ao menos em parte, o caráter científico da  jurisprudência. Ela tem, além disso, um relevante peso em relação ao  problema da legitimidade da regulação dos conflitos sociais mediante  decisões judiciais”.

Como o respeito aos precedentes é um dos pilares de uma boa  argumentação racional, tornar científica a jurisprudência tem papel fundamental  nessa discussão, haja vista que o sistema dos precedentes for tratado como  resultado do acaso ou sem qualquer amparo científico, não teria sentido incluí-lo  como uma das bases da argumentação racional.

O objetivo da argumentação jurídica é justificar a própria posição  sobre a questão jurídica levantada; ou seja, deve ser justificado com  razões aceitáveis e convincentes para que uma posição seja  assumida.

[...] Visa também alcançar a adesão do público a quem se dirige, mas discute-se se o argumento persuade ou convence, pois  persuadir significa fazer com que a outra parte adira à nossa tese,  enquanto convencer refere-se a impor nossa tese contra a tese do  oponente, ou seja, derrotá-lo.

Duas principais funções, portanto, são extraídas do texto acima acerca  da argumentação: a função de justificação e a função de convencimento.

Para o Poder Judiciário, justificação encontra-se no centro das atenções, uma vez que é  pela argumentação jurídica e racional que se desenvolve um modelo democrático de  exercício do poder estatal, eis que torna essa importante atividade mais afastada  das imprevisões (com o respeito aos precedentes os casos novos já possuem uma  perspectiva bem aproximada do resultado que terá no foro), caprichos pessoais  (com o respeito à lei as vontades pessoais ficam limitadas) e restrição à criação  inusitada de decisões sem respaldo no direito (com a submissão à dogmática  jurídica evita-se decisões embasadas, exclusivamente, em elementos de fora da  ciência do direito).

Assim, essa legitimidade tem que estar cravada em algum terreno  firme, e outro não há melhor do que a da argumentação racional, pois ela  impessoaliza, torna previsíveis, ao menos de modo aproximado, futuras decisões a  respeito de casos semelhantes já julgados, entregando o que mais se espera do  órgão aplicador da lei: Justiça e segurança jurídica.

 Alexy lançou três importantes perguntas a respeito  (1) onde e em que medida são necessárias valorações, (2) como  atuam essas valorações nos argumentos qualificados com  “especificamente jurídicos” e (3) se tais valorações são passíveis de  fundamentação racional [...]

Delimitando a gradação da racionalização (quanto mais aberta for a  margem de valoração, maior será a necessidade uma argumentação racional mais  elaborada), seu campo de atuação (onde ela é necessária) e tornando científica sua  metodologia para aplicação aos argumentos jurídicos, certamente uma longa  jornada rumo a uma aplicação do direito mais justa terá sido percorrida.

A teoria do discurso é uma teoria procedimental da racionalidade  prática. De acordo com a teoria do discurso uma proposição prática  ou normativa é correta (ou verdadeira) se e somente se ela pode ser  o resultado de um discurso prático racional.

As condições da  racionalidade discursiva podem ser explicitadas através de um  sistema de princípios, regras e formas do discurso prático geral.

 Esse  sistema compreende regras que exigem não-contradição, clareza de linguagem, certeza das suposições empíricas e sinceridade,  bem como regras e formas que dizem respeito a consequências, ponderações, universalizabilidade e à gênese de convicções  normativas.

O núcleo procedimental consiste em regras que  garantem liberdade e igualdade no discurso, através da  concessão a todos do direito de participar no discurso e de  questionar e defender qualquer afirmação. (grifo nosso)

A reflexão acima de Alexy encontrará aplicação concreta quando  adiante analisarmos, os processos perante o Tribunal do  Júri, onde há limitação argumentativa de determinadas matérias impostas pela lei e  pela jurisprudência.

Já a tese da adição faz o raciocínio em sentido inverso à tese da  secundariedade. A fundamentação inicia-se jurídica, no entanto, em determinados  casos a limitação impõe que a argumentação jurídica vá só até determinado ponto,  posto que “já não são possíveis outros argumentos especificamente jurídicos.”

 Daí para frente entra em cena a argumentação prática geral.

Como terceira via, que é a adotada na teoria da argumentação jurídica  e Robert Alexy, propõe o autor a tese da integração, onde “o uso de argumentos  especificamente jurídicos devem unir-se, em todos os níveis, aos argumentos  práticos gerais.

A interpretação da teoria do discurso da racionalidade jurídica  encontra sua expressão mais clara na tese do caso especial. A tese  de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral tem sido aceita por alguns e criticada veementemente por  outros

Em síntese, entende o doutrinador que o discurso jurídico possui caracteres  diferenciadores do discurso prático geral porque aquele tem limites que este não  possui, qual seja: o respeito à lei, a consideração obrigatória dos precedentes,  enquadramento na dogmática e, em alguns casos, as limitações das regras  processuais.

Para Alexy a dogmática jurídica é uma disciplina pluridimensional, pois  compreende a descrição do direito vigente (dimensão empírico-descritiva), a sua  análise sistemática e conceitual (dimensão analítico-lógica) e a elaboração de  propostas para a solução de casos jurídico-problemáticos (dimensão prático normativa).

No entanto, sustenta que as três dimensões são muito interligadas, pois  para se descrever o direito vigente, pressupõe-se o conhecimento desse mesmo  direito ou pelo menos uma conceituação elementar para se saber que pode ser  considerado direito.

Para objetivar mais a conceituação de dogmática jurídica, traçando  condições que este conceito deve seguir, Alexy propõe que como os argumentos  jurídicos devem estar apoiados na dogmática, propõe o autor que por dogmática  seja conveniente se entender um conjunto de enunciados e não de atividades.

Por  outro lado, estes mesmos enunciados não podem estar soltos, mas sim relacionados  com a legislação e a jurisprudência. Não que naquele caso a dogmática se  restringisse à compilação de leis e neste, no apanhado de precedentes, mas os  tribunais, valendo-se dos enunciados dogmáticos, acabam por retroalimentar a  própria dogmática, inovando sempre que possível, desde que respeitadas algumas  regras.

Em outra senda, Alexy considera que existam critérios pressupostos  pela dogmática jurídica, como o da não contradição dos enunciados dogmáticos com  as normas vigentes (critério negativo).

Há também critérios positivos, os quais rezam  que pode ser apresentado em favor de determinado enunciado argumentos  apoiados em outras normas jurídicas ou até mesmo em enunciados já reconhecidos  como dogmáticos, e que tal enunciado de referência seja formulado em linguagem  jurídica (critério adicional). 

Por fim, a categoria de enunciados dogmáticos formada pelas descrições e caracterizações de estados de coisas trabalham em conjunto com as  categorias das formulações dos princípios. Isto ocorre porque os princípios que são conceituados por Alexy como “enunciados normativos de um alto nível de  generalidade que, normalmente, não podem ser aplicados sem agregar premissas  normativas adicionais e, muitas vezes, experimentam limitações por meio de outros  princípios” – precisam das descrições dos estados de coisas a fim de o aplicador  da norma saber o campo de atuação dela.”

Após traçar esta classificação geral dos enunciados da dogmática  jurídica, Alexy propõe o estudo e análise da teoria da dogmática em partes: o uso  dos enunciados dogmáticos; a fundamentação e comprovação de enunciados  dogmáticos; as funções da dogmática.

Quanto ao uso dos enunciados dogmáticos, se o enunciado a ser  fundamentado precisar de outros enunciados dogmáticos para fundamentá-lo, cuida se então da chamada fundamentação dogmática pura.

Por outro lado, se é  necessário o uso de argumentos práticos gerais ou até mesmo normas jurídicas  positivadas, daí teremos a fundamentação dogmática impura.

Quanto à fundamentação dos enunciados dogmáticos, Alexy propõe  que eles não podem se fundar apenas em normas jurídicas ou em enunciados  empíricos. A primeira hipótese não se sustentaria porquê de nada valeriam os  enunciados dogmáticos para fundamentar uma argumentação sobre conteúdo que  exceder ao da norma que o sustenta.

Já na segunda hipótese (de fundamentação  apenas por enunciados empíricos), os enunciados dogmáticos não teriam conteúdo normativo.

Concluiu Alexy dizendo que: “Isso não significa que na fundamentação de  enunciados dogmáticos não sirvam para nada as normas vigentes e os fatos, ao  contrário. Mas prova que nem umas nem outros são por si só suficientes.”

Importante ressaltar também que Alexy permite o uso de enunciados dogmáticos para fundamentar novos enunciados dogmáticos. No entanto, como  esses enunciados-base também são fundamentados, em determinado momento os  enunciados dogmáticos terminam e serão necessários outros argumentos.

Como os  enunciados dogmáticos têm conteúdo normativo, estes outros argumentos só podem  ser argumentos práticos de tipo geral.

Para finalizar a tratativa sobre a dogmática jurídica, a análise de suas  funções faz-se muito importante. Na teoria da argumentação jurídica de Alexy, a  primeira das funções da dogmática é a estabilização.

Explica o autor que se  tivéssemos que rediscutir todos os casos novamente, mesmo que respeitando as  regras do discurso, resultados diferentes seriam alcançados para as mesmas  situações prática, e isto não é condizente com o princípio da universalidade. Desta forma, pode-se estabelecer, por certo tempo, determinadas formas de decisão.

É possível, portanto, adotar nas fundamentações dogmáticas  enunciados já estabelecidos e assentes no meio jurídico sem a necessidade de nova  comprovação.

Um bom exemplo de enunciado dogmático é o que reza que a  ninguém é dado beneficiar-se pela própria torpeza. Ao invocar este postulado em  determinada argumentação jurídica, o falante não precisará tecer longa  fundamentação com inúmeros julgados, doutrina de autores de peso para provar  algo tão pacífico no direito.

Bastará mencionar o enunciado dogmático e a outra  parte, caso tenha alguma razão especial para tanto, que terá que refutá-lo. Quem  invocá-lo, portanto, estará desobrigado de comprová-lo.

O discurso jurídico racional, como vimos, deve, dentre outros aspectos,  respeitar os procedentes.

Para Alexy, a grande função dos procedentes é assegurar  a aplicação do princípio da universalidade (e não da igualdade ou isonomia, como  comumente chamamos no Brasil).

 A importância dos precedentes, com maior  grau nos ordenamentos jurídicos onde prepondera o common law, mas que também  possuem grande relevância nos de civil law, temos o seguinte:

No sistema de precedentes da Common Law, a norma expressa em  determinada decisão judicial (holding) e sua motivação central (ratio  decidendi) têm caráter vinculante (binding) e aplicam-se aos casos  futuros, chamando-se essa obrigatoriedade de stare decisis, dela  excluídas, apenas, as notas incidentais e acessórias (obter dictum)  registradas na fundamentação (opinion).

É importante esclarecer  que, se a decisão do caso particular vincula as partes, não é esse  resultado da demanda, propriamente, que forma o precedente.

Este  se compõe de razões jurídicas consistentes em proposições de  direito, doutrinas aplicadas e fatos até mesmo doutrinas abstratas  lançadas na fundamentação, formando os princípios substanciais  que dão corpo ao elemento autoritativo.

Assim, as decisões das  controvérsias devem basear-se em princípios de direito já seguidos  em casos anteriores e as interpretações das leis (statutes) irradiam se pelo sistema jurídico e afetam sua compreensão com um todo,  instituindo um sistema de regras e princípios amalgamados.

A princípio, sendo iguais as circunstâncias relevantes entres os casos,  a regra é a aplicação do precedente à hipótese concreta. Ocorre que, mesmo  considerando-se iguais as características mais importantes dos casos, pode  acontecer de a valoração de uma ou mais dessas características tenha mudado.

Portanto, em respeito à pretensão de correção que o Direito sempre almeja, em tal  contexto será natural (e exigível) uma tomada de decisão diversa do que fora  estabelecido pelo paradigma.

A esse respeito, Alexy informa que:  “Condição geral é que a argumentação seja justificável. Nesta  situação surge como questão de princípio a exigência do respeito  aos precedentes, admitindo afastar-se deles, mas cabendo em tal  caso a carga da argumentação a quem queira se afastar”.

É o que Perelman chama de princípio da inércia, onde o respeito aos  precedentes é fundado no que comumente se espera de uma sociedade  minimamente estável. Vejamos:

O mais das vezes, entretanto, o orador só pode contar, para suas  presunções, com a inércia psíquica e social, que, nas consciências e  nas sociedades, corresponde à inércia na física. (...)

De fato, a inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o  atual e valorizá-lo, quer se trate de uma situação existente, de uma  opinião admitida ou de um estado de desenvolvimento contínuo e  regular. A mudança, em compensação, deve ser justificada; uma

A decisão, uma vez tomada, só deve ser alterada por razões  suficientes.

Embora o respeito aos precedentes seja uma das máximas da teoria  de Perelman e de Alexy, ambos os autores concordam que se deve dar margem às  mudanças, principalmente quando fundadas em necessidade de aprimoramento do  direito, mas sempre justificadas. Ainda a respeito do princípio da inércia de  Perelman: 

O princípio da inércia de Perelman possui uma importância  considerável. Quando um falante afirma algo, seus parceiros de  ;discussão têm, de acordo com (2), o direito de exigir uma  fundamentação.

Um enunciado ou uma norma contrária que é  pressuposta na comunidade dos falantes como verdadeira ou válida,  mas que não é expressamente afirmada ou discutida pode, de  acordo com esse princípio, ser questionada somente através da  indicação de uma razão.

Essa justificação implica numa carga de argumentação (que é uma das  regras do discurso jurídico) sobre aquele que pretende expor a exceção, o diferente,  tal como se fosse uma espécie de ônus argumentativo.

Adiante, Alexy resume as regras gerais do uso dos precedentes:

Quando se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão,  deve-se fazê-lo.

Quem quiser se afastar de um precedente, assume a carga da  argumentação.

Sobre tal tema, o art. 489, parágrafo primeiro, inciso VI, do Código de  Processo Civil, disciplina que:  Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela  interlocutória, sentença ou acórdão, que: 

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou  precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de  distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento82.

No caso, as locuções do texto da lei “distinção” e “superação do  entendimento” remetem, respectivamente, aos institutos do distinguishing e  overruling.

Considerando que a aplicação dos precedentes é uma das regras para  racionalizar a argumentação jurídica, dela não pode fugir o aplicador da norma, seja  para aplicar o precedente, seja para afastá-lo, em qualquer dos casos  justificadamente.

Com isso, abre-se a vertente de discussão sobre o que deve ser  considerado como norma diante de determinado precedente, pois “O Direito do  precedente é também um Direito de normas”. Com isso, muito se produziu a  respeito da distinção entre ratio decidendi e obiter dictum.

No entanto, Alexy praticamente ignora essa distinção pretendia e foca  na possibilidade de aplicação do distinguishing e do overruling, sempre de maneira  fundamentada. Desta maneira, o princípio da universalidade e a regra da carga da  argumentação se encarregam de dar a conotação racional ao uso dos  precedentes.

Observa-se que Alexy buscou o não engessamento do Direito ou do  aplicador da norma quando deixa um espaço para a busca do correto (pretensão de  correção), mas sem esquecer que essa investigação não pode ser a qualquer preço,

tem que respeitar as balizas acima indicadas (respeito à lei, aos precedentes e à  dogmática jurídica).

Uma teoria procedimental da  racionalidade prática, vamos então aos exemplos: em relação à possibilidade, em  casos especiais, de uma decisão que contrarie a literalidade da norma, com o forte  apelo às teorias que defendem o ativismo judicial mais abrangente, temos como v.g.,  as recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ, acerca da   inviolabilidade do domicílio, mormente nos crimes de tráfico de drogas, ao exigir  requisitos onde nem a Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB/1988 e  tampouco o Código de Processo Penal – CPP o fazem, para que se dê validade às  prisões em flagrante quando encontrada droga no interior da residência do acusado.

Vamos ao julgado:

Excerto do Habeas Corpus nº 611.918-SP – STJ: No presente caso,  nota-se que, apesar de ter sido encontrado com o paciente um pino  de cocaína, não foram realizadas investigações prévias, nem foram  indicados elementos concretos que confirmassem ocorrência do  crime de tráfico de drogas dentro da residência, não sendo  suficiente o fato de ter sido encontrada droga com o paciente,  sendo ilícita a prova obtida com a invasão de domicílio sem a  indicação de fundadas razões.

Tomando como ponto de partida o foco do presente trabalho, que é  analisar a aplicabilidade da teoria da argumentação de Alexy nos processos em  que o Ministério Público atua, temos um interessante problema a ser enfrentado  com esse paradigma jurisprudencial, já que o Ministério Público é titular da maioria  das ações penais.

Conforme foi dito acima, um dos pontos que Alexy chama a atenção é  justamente as limitações próprias que o discurso jurídico tem em relação ao discurso  prático geral (tese do caso especial). Na argumentação jurídica, dentre as  condições limitadoras que a cerca, temos a “sujeição à lei, a consideração  obrigatória dos precedentes, seu enquadramento na dogmática elaborada pela  Ciência do Direito organizada institucionalmente”.

Ora, a estrutura da argumentação jurídica dessa decisão foge às  exigências da teoria de Alexy para bem estruturar a fundamentação.

Não foram  lançados argumentos suficientes para afastar os precedentes em sentido contrário  (nem mesmo houve justificação idônea para o afastamento dessa orientação, ferindo  as regras do overruling), bem como não houve respeito ao direito positivo vigente  (art. 5, inc. XI, da CRFB e art. 302, I, do Código de Processo Penal – CPP).

Para  melhor elucidar o tema, citaremos abaixo o texto claro da Constituição Federal brasileira vigente, um dos vários precedentes em sentido contrário e o texto do Código de Processo Penal  a respeito:

CRFB. Art. 5º, XI: - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém  nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em  caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou,  durante o dia, por determinação judicial;

STJ. Excerto do AgRg no HC 691609/SP: III - No que concerne à  alegação acerca da ocorrência de violação de domicílio, cumpre  consignar que em se tratando de crimes de natureza permanente,  como é o caso do tráfico de entorpecentes, mostra-se prescindível o mandado de busca e apreensão para que os  policiais adentrem o domicílio do acusado, não havendo que se falar  em eventuais ilegalidades relativas ao cumprimento da medida.

Vale  dizer, em outras palavras, que o estado flagrancial do delito de tráfico  de droga consubstancia uma das exceções à inviolabilidade de  domicílio prevista no inciso XI do art. 5º da Constituição, não  havendo se falar, pois, em eventual ilegalidade no fato de os policiais  terem adentrado na residência do Agravante, pois o mandado de  busca e apreensão é dispensável em tais hipóteses. (grifo nosso)  

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:  I - está cometendo a infração penal;

Há, portanto, uma exigência no acórdão do HC 611.918-SP (prévia investigação ou fundada suspeita) que não foi racionalmente justificada.

Uma porque em situações idênticas em decisões daquela mesma Corte, não se faziam necessários esses requisitos; a duas porque nada fora explicitado a este respeito no corpo do acórdão, algum argumento que viesse a justificar o afastamento da tese em sentido contrário.

Ora, se nada mudou: a legislação é a mesma, os fatos os  mesmos, a definição jurídica para crimes permanentes é a mesma, qual a razão  então para se exigir a prévia investigação ou fundada suspeita que outrora não se  exigia?

Se esta diferenciação não for racionalmente justificada, como de fato não o  fora no acórdão, não encontra amparo na teoria de Alexy, posto que não observou  os precedentes, nem mesmo a clareza das regras de Direito expostas.

Existe expressa previsão constitucional de limitação do direito  fundamental à inviolabilidade do domicílio. Por sinal, há tanto uma limitação direta  quanto indireta no mesmo texto.

Como direitos de hierarquia constitucional, direitos fundamentais  podem ser restringidos somente por normas de hierarquia  constitucional ou em virtude delas.

Restrições a direitos  fundamentais são, portanto, ou normas de hierarquia constitucional  ou normas infraconstitucionais, cuja criação é autorizada por normas  constitucionais.

 Na teoria Alexyana referente ao  princípio da estabilização do direito, do respeito aos precedentes e à lei, esta  decisão do egrégio Supremo Tribunal Federal não encontra amparo em Alexy.

Diz ainda o julgado da ADO 26/DF que: “Por maioria e nessa extensão,  julgá-la procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para: (...) dar  interpretação conforme à Constituição [...]”. (grifo nosso)

A interpretação conforme  possui em regra dois principais fundamentos mencionados na doutrina: a unidade do  ordenamento jurídico e a presunção de constitucionalidade das leis.

Ora, a  interpretação conforme é dada para “salvar” determinados textos legais que  permitem interpretações em consonância e contrárias à constituição, orientando,  evidentemente, que se mantenha o texto, mas somente com validade nos sentidos  que não contrariem a lei maior. 

Outro ponto importante é o que se extrai da própria petição inicial que

deflagrou a ADO 26/DF:   (d) “caso transcorra o prazo fixado por esta Suprema Corte sem que  o Congresso Nacional efetive a criminalização/punição criminal  específica citada ou caso esta Corte entenda desnecessária a  fixação deste prazo, [requer-se] sejam efetivamente tipificadas a  homofobia e a transfobia como crime(s) específico(s) por  decisão desta Suprema Corte, por troca de sujeito e atividade  legislativa atípica da Corte, ante a inércia inconstitucional do  Parlamento em fazê-lo, de sorte a dar cumprimento à ordem  constitucional de punir criminalmente a homofobia e a transfobia (...),  superando-se a exigência de legalidade estrita parlamentar”; (grifo  nosso)

Embora a decisão não se comprometa com os fundamentos da ação,  não se pode ignorar o trecho acima, onde o próprio autor da lide reconhece a  atipicidade da conduta, tanto é que requer uma forma de tipificação dos atos por  “decisão desta Suprema Corte”.

Se é preciso uma tipificação mediante decisão de  Tribunal e não houve o acolhimento do pedido nessa parte, a se permitir a validade  do argumento da inicial (pois o fato de o STF não o ter acolhido não implica  necessariamente a sua invalidade), o que houve na verdade foi uma analogia in  malam partem, por mais que se negue tal ocorrência.

Trata-se de um típico caso de ativismo judicial. No entanto, o ativismo  judicial não necessariamente é ruim ou bom para o sistema jurídico, tudo depende  da legitimação das argumentações (também em boa parte na forma do proceder) no  plano das teorias próprias do direito a tal respeito.

Certo é que o STF se viu pressionado a dar uma solução à inércia do  Poder Legislativo e ficou preso à sua própria jurisprudência que não admite a

Trecho da petição inicial citada no acórdão da ADO 26/DF. Disponível em:https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240

interferência cogente naquele Poder de forma a determinar-lhe que edite uma lei  criminalizando condutas objeto da ação. Neste sentido: 

Segundo o autor, a aurora do direito moderno e do positivismo  primitivo faz uma dupla exigência ao Poder Judiciário. Estas duas  exigências, contudo, são mutuamente paradoxais. Como? Em  primeiro lugar exige-se que o julgador seja apenas a “boca da lei” e  reproduza aquilo que foi determinado pelo legislador.

Esta exigência  está embasada na crença da completude do sistema e coage o  julgador. Em segundo lugar, contudo, proíbe-se a denegação de  justiça (proibição do non liquet). Ao ter que decidir tudo é evidente  que o julgador terá que criar direito, pois, como se sabe, é impossível  que todos os tipos de caso sejam regulados expressamente pelo  legislador.

Assim, a coação se transforma em liberdade.

No caso específico do julgamento da ADO 26/DF, entende-se que  houve violação de diversos princípios e orientações da lógica do discurso racional,  em especial o respeito aos precedentes e à dogmática jurídica tão caros na teoria de  Alexy, fazendo parecer que os ministros que votaram a favor da ADO decidiram por  critérios outros e buscaram os argumentos lançados no acórdão para justificar  convicções não passíveis de serem expostas formalmente no julgamento,  justamente por ser um caso extremamente difícil, pois o indeferimento do pedido  aumentaria o período de vácuo legislativo acerca da proteção dos interesses  envolvidos.

Toda a valoração exposta pelo STF quanto à necessidade de maior  proteção jurídica às minorias homossexuais ou transexuais, o histórico de  discriminação no Brasil, o atraso do Congresso Nacional etc., tudo isso são  valorações que foram exploradas de forma equivocada, pois a tal respeito nunca  houve dissonância, o que fere uma das regras da argumentação jurídica racional  que é problematizar algo que não é objeto de discussão, bem como usar uma  pseudo função contramajoritária onde na verdade não há. É dito na decisão:

“Muito mais importante, no entanto, do que atitudes preconceituosas e  discriminatórias, tão lesivas quão atentatórias aos direitos e  liberdades fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de  suas convicções, orientação sexual e percepção em torno de sua  identidade de gênero, é a função contramajoritária do Supremo  Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no  exercício irrenunciável da jurisdição constitucional, a autoridade e a  supremacia da Constituição e das leis da República”. (grifo nosso)

Há uma atecnia argumentativa no citado texto, uma vez que decidir a  favor do direito de determinada minoria nem sempre é uma posição  contramajoritária, pois é perfeitamente possível que a maioria concorde com o  sentido do julgamento.

Estar de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser  ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma  influência determinada, que se pode alegar numa argumentação,  sem se considerar, porém, que esse ponto de vista se impõe a  todos.

(...) Recorre-se a eles para motivar o ouvinte a fazer certas  escolhas em vez de outras e, sobretudo, para justificar estas, de  modo que se tornem aceitáveis e aprovadas por outrem.

De tal forma, entende-se que decidir a favor de maior proteção a  homossexuais e transexuais, reconhecer que sofrem discriminações e que precisam  de maior proteção do Estado não é contramajoritário, pois é de se supor que ao  menos a maioria das pessoas concorde que ninguém deve sofrer discriminações,  seja lá por qual motivo for, muito menos agressões físicas ou à sua honra por conta  de seu sexo, o que é muito diferente de concordar com práticas homossexuais ou  não.

O STF assentou uma possível discordância da maioria das pessoas como  fundamento de sua posição contramajoritária, quando na verdade o mais provável é  que haja consenso acerca da proteção aos interesses dessas pessoas. 

Ao tratar dos fatos e verdades, que são espécies de acordos na visão  de Perelman, o autor relata que :Os fatos são subtraídos, pelo menos provisoriamente, à argumentação, o que significa que a intensidade de adesão não tem  de ser aumentada, nem de ser generalizada, e que essa adesão não  tem nenhuma necessidade de justificação.

A adesão ao fato não  será, para o indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se  impõe a todos.

Os principais pontos da investigação que permitiram a sustentar essa  conclusão é que a subjetividade sem controle gera abusos, tanto na própria atuação  do Ministério Público como autor de ações judiciais (cíveis e criminais, com  instauração de procedimentos investigatórios etc.), como no controle das decisões  judiciais nos feitos em que atua. Logo, quanto maior a racionalidade na aplicação do  direito, que é um dos focos da teoria de Alexy, menor será o espaço para  subjetivismo.

A necessidade de busca do ideal de correção do Ministério Público,  conforme levantado no tópico específico a este respeito, é importante para que o  órgão caminhe passo a passo com a evolução do direito e não cometa equívocos  por não acompanhar a pretensão de correção que o direito sempre busca.

 

 

Referências

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