Argumentação
jurídica de Robert Alexy nos processos criminais.
Abordar
o tema sobre a evolução da argumentação jurídica implica necessariamente irmos
até a Grécia Antiga, o berço da
democracia ocidental. Lembrando que os gregos eram avessos à tirania, onde os
conflitos eram dirimidos por meio da violência e pelo uso da força. Igualmente os gregos valoraram um
relevante atributo humano que é a fala, daí terem enfatizado a retórica.
Na
mitologia grega era Peithó ou Peito a deusa da persuasão ou sedução que
sempre andava junto com Afrodite e, daí derivou o verbo convencer que era
atribuído a essa deusa da mitologia dotada de dons metafísicos do
convencimento.
Peitho,
na mitologia grega, era a deusa da persuasão e da sedução. Ela era seguidora de
Afrodite e, em algumas versões, era filha da deusa com um deus. Peitho casou-se
com Hermes, o mensageiro dos deuses
Um
marco antropológico se estabeleceram sobre três estatutos da palavra na Grécia,
na democracia da palavra é de todos, no meio da ágora, pertence ao mais hábil e
ao melhor preparado, que é peitho, a arte da persuasão.
Nota-se
um destronamento do pensamento mítico em busca do pensamento racional, mas de
outra perspectiva epistemológica é mencionado Georges Gusdorf, que afirma que
nos gregos a coexistência de discursos racionais e míticos não implica tensões
ou conflitos e que propõe que se leia os mitos como sistemas de representação e
não como estágios históricos.
A
retórica como a arte do uso da palavra falada era muito usada como instrumento
de deliberação popular sobre diversos assuntos, como política, impostos,
solução de lides judiciais cíveis e até condenações criminais, e não raras
vezes alguns cidadãos eram chamados a expor as razões de seus votos.
Quando
adentrarmos no século XX, aí sim o termo
argumentação terá um uso mais forte, pois valerá não só para a formação do convencimento e justificação
escrita, como também falada.
O
nascimento histórico da Retórica é costumeiramente localizado no século V antes de Cristo, em Siracusa, na
Magna Grécia, onde hoje é a Itália. Após
a queda do tirano Trasíbulo, sucederam-se inúmeras causas para a restituição, aos legítimos
proprietários, das terras que o tirano
lhes havia subtraído.
Desde
suas origens, está, portanto, a Retórica
indissociavelmente ligada ao Direito, no aspecto que Aristóteles mais tarde chamará de "gênero
judicial" do discurso retórico.
O
primeiro tratado de Retórica, naturalmente rudimentar, foi escrito em 465 a.c. por Tísias e Córax, dois
oradores que se notabilizaram na defesa
das vítimas dos arbítrios cometidos pelo tirano de Siracusa.
A
Retórica só se desenvolveu plenamente, no entanto, após a consolidação da democracia
ateniense. Todos os cidadãos atenienses
participavam diretamente nas assembleias populares, que possuíam funções legislativas,
executivas e judiciárias.
Destacou-se
o filósofo Aristóteles com a obra intitulada Retórica onde defendeu a clareza
como expressão máxima de um bom discurso.
O
orador deve falar com naturalidade, usar de figuras de linguagem e analogias a
fim do discurso não parecer monótono e pobre, não se valer de vulgaridades e
outras iniquidades que pudessem maculá-lo. Assim, falar de modo claro com
ritmo, elegância e expressões adequadas a cada gênero discursivo são aspectos
formais essenciais ao retórico. Tudo isso enaltece a verdade das palavras do
orador.
Na
obra "Retórica" o filósofo destaca três tipos de discursos,
1) o
judicial, onde se resolvem as questões passadas, cujos atos em regra eram
acusar ou defender, destinados aos
juízes e os valores eram o que era justo ou injusto, principalmente baseados os argumentos no
sistema dedutivo;
2) o
deliberativo, onde se discutiam as
questões políticas dirigidas à assembleia, portanto, voltadas mais ao futuro, cujos atos eram de aconselhamento ou
dissuasão, com valores apreciados sob a
ótica da utilidade e nocividade, geralmente baseados em argumentos indutivos e;
3) o
demonstrativo (ou epidítico), que tinha como destinatário o espectador e
discutiam-se assuntos do presente, geralmente em cerimônias solenes ou em praça
pública com atos de louvor ou censura
sobre o que era nobre ou vil, ético ou antiético,
belo ou feio, em regra valendo-se de recursos de amplificação.
A
retórica é útil porque o verdadeiro e o justo têm naturalmente mais valor do
que seus opostos. O resultado é que se os julgamentos não forem proferidos como devem ser, o verdadeiro
e o justo estarão necessariamente
comprometidos, resultado censurável a ser atribuído aos próprios oradores.
(...)
Além disso, é necessário estar capacitado
a empregar a persuasão, tal como os silogismos podem ser empregados, nos lados opostos de uma
questão, não para nos dedicarmos
indiscriminadamente a ambas as operações (uma vez que não devemos levar as pessoas a crer no que
é incorreto), mas para que possamos ver
com clareza o que são os fatos e, no caso
de outrem argumentar sem justeza, sermos capazes de destruir sua argumentação.
A
persuasão estava vinculada a três provas técnicas da retórica: a) o caráter do orador;
b) as disposições em que se colocam os ouvintes; c) o próprio discurso.
Podemos
ver, portanto, que essa sistematização do pensamento acerca das técnicas de
argumentação foi muito importante para o aprofundamento da disciplina, uma vez
que essas ideias poderiam ser levadas adiante, como de fato ocorreu em seguida
no império romano e nos acompanha até hoje.
Embora
a contribuição dos gregos tenha sido fundamental, foi, no entanto, pelas mãos
dos romanos que a doutrina da retórica se difundiu pelo mundo afora
acompanhando a expansão do império romano, sendo fixada institucionalmente na
educação e transmitida e retransmitida até a idade média em especial através das obras de Cícero (106-43
a.C).
Dos
três elementos da arte (dons naturais, técnica e prática), e 2. das partes do
discurso – 2.1. inventio (os argumentos), dispositivo (a ordem dos
argumentos), elocutio (a ornamentação com recursos estilísticos), memória (a memorização
do discurso) e actio (a gesticulação e a dicção), e 2.2. dos sentimentos
que devem ser incentivados na audiência – conciliare (como atrair o
público), probare (como persuadir com argumentos) e movere (como emocionar os ouvintes).
Sêneca
expõe com maestria a discussão sobre a amizade,
fundamentando bem o porquê de seu cultivo, e usa na segunda metade do trecho a argumentação com a técnica da
comparação com o amor, para melhor ilustrar
seu raciocínio e reforçar a ideia de que ambos, amor e amizade, devem ser indiferentes a interesses espúrios.
Foi
com Quintiliano (35-95 d.C) que a retórica
e argumentação ganharam um sopro de vida quando parecia já relegada em segundo plano, conseguindo ele sistematizar o
pensamento de Cícero em conjunto com
toda a tradição grega até então produzida, que resultou em sua obra “Institutos
de Oratória” (Institutio Oratoria),
que foi dividida em doze livros, sendo o Livro X um dos mais importantes, onde ele elenca um rol
de autores gregos e latinos que seriam fundamentais
para a formação de um bom orador.
A obra
“Retórica a Herênio” (durante muito tempo foi atribuída a Cícero, mas ainda há
dúvidas sobre quem seja verdadeiro autor) entra em cena como o mais importante escrito sobre o
tema que influenciou os pensadores
medievais:
É
dividida em quatro livros: 1) o ofício do orador, as partes do discurso e os gêneros da narração; 2) os
gêneros das causas que movem o orador,
as constituições legais, as partes do direito e da argumentação; 3) os gêneros, a disposição e a
pronunciação, a configuração da voz e a
memória, e 4) a elocução, suas figuras e comodidades.
Nessa
estrutura, a Retórica a Herênio inova: acrescenta
a memória às costumeiras fases de elaboração do discurso – se entenda memória como a
capacidade do orador de recordar os
temas e a ordem de seu discurso com determinadas técnicas aprendidas com a retórica.
Nesta
obra o que a diferencia das outras de sua época é a inovação com o acréscimo da memória às costumeiras
frases de elaboração do discurso. Embora
se dedique a todas as virtudes do orador, a obra dá especial atenção à correção e à clareza do discurso.
Verificou-se
que a retórica passou por diversas mudanças desde a era da filosofia clássica grega, em
especial no período aristotélico, onde pregava-se
um enaltecimento da persuasão.
Logo
adiante será demonstrado que na idade
média este estilo retórico sofreu diversas mudanças, em especial a diminuição significativa do caráter persuasivo, para
adotar mais uma linha voltada à religião (discursos de cunho moral e pregações de
censura a determinados comportamentos).
O que
predominou na era medieval foram as narrativas epidíticas ou descritivas, pois como ênfase era na poética,
essa forma de discurso era favorecida por
este estilo:
O
discurso epiditíco foi, indubitavelmente, o que mais inspirou a poesia medieval, já que seu intuito primordial
é o elogio. Segundo a enumeração de
Curtius (1996), vários são os objetos que foram elogiados: “deuses, homens, países, cidades,
animais, plantas (loureiro, oliveira,
roseira), estações do ano, virtudes, artes e profissões.” (CURTIUS, 1996).
A
extensão dos temas laudatórios demonstra
que a retórica epidítica estava intimamente ligada à poesia, pois esta favorece os grandes
louvores
Cogitando
de Idade Média, filosofia e retórica implica falar de Santo Agostinho (345-430), pois: “Ele se valeu da retórica em várias passagens
de sua monumental obra A cidade de Deus
(c. 412-426), quando explicou e interpretou textos (especialmente a Bíblia). Por exemplo,
quando discorreu sobre o sentido do
descanso de Deus no sétimo dia da criação [que deve ser compreendido como uma figura de linguagem
– “o repouso de Deus significa o repouso
dos que n’Ele descansam, assim como a alegria
de uma casa significa a alegria dos que nela se alegram” (XI, 8)]; quando abordou a essência de Deus e a
ordenação das naturezas segundo os graus
de Sua essência e o sopro divino na alma
(XIII, 11 e 24); quando analisou o sentido de amor e de afeição e as perturbações na alma do sábio estoico
(XIV, 7 e 8); quando discorreu sobre o
amor da cidade de Deus e o amor da cidade dos homens (que nada mais é, para
ele, do que o amor pelos corpos das mulheres)
(XV, 22)”.
Santo Agostinho
desenvolveu seu trabalho sempre tendo como elemento basilar da argumentação o
conhecimento e, seguindo os passos de seu mestre Platão, em quem se inspirou profundamente,
deixou escrito em seus textos sua preocupação
que a retórica viesse a ser utilizada, como os sofistas o fizeram, fora dos valores que pregava, que era o bem e o
amor:
Finalmente,
se alguém for incapaz de falar ao mesmo tempo com sabedoria e eloquência, que diga ao menos com
sabedoria o que não consegue dizer com
eloquência, de preferência a dizer eloquentemente
coisas tolas.
Todavia,
quem não é sequer capaz de fazer isso,
deve se comportar de tal maneira para não somente conseguir a recompensa para si, mas também
para dar o exemplo ao outros, tornando
seu modo de viver uma espécie de eloquente pregação.
Voltada
à retórica religiosa na idade média, com grandes oscilações no seu valor ao
longo de quase mil anos (restou um pouco desvalorizada no início da idade média, mas
ganhou fôlego após algum tempo, principalmente
depois de Santo Agostinho), no renascimento inicia novo ciclo de declínio.
As
novas ideias vão dar-lhe um golpe mortal, rompendo o elo entre a arte a argumentação racional (dialética) e a
oratória, que lhe davam força e valor.
A
partir do século XVII ou XVIII, a retórica é posta a serviço do poder pontifício e das monarquias. A aristocracia
fará dela um instrumento de distinção
social, o que, em conjunto com a disseminação do método científico e a relevância dada à
verdade científica (Positivismo), leva
ao declínio, que se manterá no século XIX – com a sua rejeição pelos românticos em nome do
enaltecimento da sinceridade –, e em
grande parte do século XX.
A
retórica e a teoria da argumentação, desde sua sistematização por Aristóteles, sofreram diversos altos e baixos
ao longo do tempo. No Renascimento, com
o afastamento maior das pessoas em ralação à religião, o aumento do senso crítico de todos, que passam a questionar
antigos dogmas que antes eram impostos apenas
com base na coerção e outrora na fé, a palavra escrita e falada assumiu um papel de instrumento de proteção do cidadão em
face do Estado e de mudança de paradigma
na forma de solução dos problemas, que costumeiramente eram feitos à força, com subjugação e passou a predominar a
razão, a lógica e a civilidade.
O
movimento de intensa positivação do Direito, mormente após o Código Civil francês de 1804, onde buscou-se
maior segurança jurídica com o Direito
escrito, na tentativa de minimizar o arbítrio do aplicador das normas com a subsunção entre o que fora previsto
abstratamente na lei e o caso em concreto.
Ocorre
que a experiência mostra que o Direito positivado não consegue prever todas as possibilidades de problemas
possíveis de ocorrerem; a norma escrita
sempre está um passo atrás da dinâmica da vida em sociedade.
Fora
esse delay legislativo, existe o problema de eventual precariedade na
linguagem exposta na norma acaso existente, o que redundará em maior margem discricionária para interpretação e,
via de consequência, o aumento dos riscos
que se buscou reduzir com a codificação.
Robert
Alexy, considerado um dos principais autores da linha pós positivista de viés
procedimentalista, é fundamental para entender o caráter legitimador da argumentação jurídica, tanto no
que diz respeito à validade das normas
jurídicas, quanto no papel do direito como ferramenta de resolução dos conflitos sociais.
Daí
porque Alexy, após dizer que invariavelmente a decisão jurídica “não se segue logicamente das formulações das
normas jurídicas que se supõem vigentes”.
Propõe
o doutrinador quatro motivos para tal: (1) a imprecisão da linguagem do Direito, (2)
a possibilidade de conflitos entre as
normas, (3) a possibilidade de haver casos que requeiram uma regulamentação jurídica, uma vez
que não cabem em nenhuma norma válida
existente, bem como (4) a possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contraria
a literalidade da norma.”
Diante
desses problemas é que a metodologia jurídica entra para apaziguar os ânimos e tentar fornecer as
regras e procedimentos para orientar a boa formação das decisões jurídicas, sendo os
chamados “cânones de interpretação” os
meios mais comuns para essa tarefa.
No
entanto, os cânones mais conhecidos (método filológico, lógico, sistemático, histórico e outros) apresentam um
problema: a depender de qual deles é
usado, a solução da controvérsia pode ser muito diferente entre eles.
Assim,
um uso metodológico e científico desse
sistema necessita de uma prévia ordenação preferencial entre eles ou uma hierarquia,
celeuma este que a ciência jurídica ainda não apontou a solução.
Alexy
traz interessante exemplo ao mencionar que determinada regra que prescreva que a interpretação da norma
deve ser dada conforme ela cumpra seu
objetivo, pode ter sentidos totalmente opostos, caso os intérpretes tenham opinião diferentes sobre o objetivo dela.
A
subsunção do fato à norma não considera necessariamente a valoração do aplicador. E a valoração,
inquestionavelmente, está presente em qualquer
aplicação de lei, até mesmo nos casos claros, onde os argumentos contrários à tese que sustenta a clareza
sofrem o juízo de valor negativo, como não aplicáveis à hipótese, justamente pela
evidência dos outros.
E, não
é difícil verificar a existência de
diversos casos em que o mero silogismo não é suficiente para a justificação da decisão:
Alexy
identifica que as decisões jurídicas possuem dois padrões de justificação: uma justificação interna, na
qual se liga as premissas extraídas do
ordenamento jurídico ao resultado, e uma justificação externa, que sustenta fundamentadamente as
premissas utilizadas na justificação
interna.
A
justificação interna costuma estar associada ao silogismo, mas também faz parte dela, no
caso da teoria de Alexy, a estrutura da
fórmula da proporcionalidade, quando esta for necessária à decisão. A teoria da argumentação
jurídica e suas regras são voltadas para
a justificação externa.
Na
obra “Teoria da Argumentação Jurídica”, Robert Alexy explica que se trata de justificação interna quando a análise
é se “a decisão se segue logicamente das
premissas que se expõem como fundamentação; e o objeto da justificação externa é a correção destas premissas
Alexy
bem coloca a necessidade de se discutir metodológica e cientificamente a questão da valoração e da
argumentação jurídica. Aponta o autor que:
“A resposta a essas perguntas é de
grande importância teórica e prática.
Dela
depende, ao menos em parte, o caráter científico da jurisprudência. Ela tem, além disso, um
relevante peso em relação ao problema da
legitimidade da regulação dos conflitos sociais mediante decisões judiciais”.
Como o
respeito aos precedentes é um dos pilares de uma boa argumentação racional, tornar científica a
jurisprudência tem papel fundamental nessa
discussão, haja vista que o sistema dos precedentes for tratado como resultado do acaso ou sem qualquer amparo
científico, não teria sentido incluí-lo como
uma das bases da argumentação racional.
O
objetivo da argumentação jurídica é justificar a própria posição sobre a questão jurídica levantada; ou seja,
deve ser justificado com razões
aceitáveis e convincentes para que uma posição seja assumida.
[...]
Visa também alcançar a adesão do público a quem se dirige, mas discute-se se o
argumento persuade ou convence, pois persuadir
significa fazer com que a outra parte adira à nossa tese, enquanto convencer refere-se a impor nossa
tese contra a tese do oponente, ou seja,
derrotá-lo.
Duas
principais funções, portanto, são extraídas do texto acima acerca da argumentação: a função de justificação e a
função de convencimento.
Para o
Poder Judiciário, justificação encontra-se no centro das atenções, uma vez que
é pela argumentação jurídica e racional
que se desenvolve um modelo democrático de exercício do poder estatal, eis que torna essa
importante atividade mais afastada das
imprevisões (com o respeito aos precedentes os casos novos já possuem uma perspectiva bem aproximada do resultado que
terá no foro), caprichos pessoais (com o
respeito à lei as vontades pessoais ficam limitadas) e restrição à criação inusitada de decisões sem respaldo no direito
(com a submissão à dogmática jurídica
evita-se decisões embasadas, exclusivamente, em elementos de fora da ciência do direito).
Assim,
essa legitimidade tem que estar cravada em algum terreno firme, e outro não há melhor do que a da
argumentação racional, pois ela impessoaliza,
torna previsíveis, ao menos de modo aproximado, futuras decisões a respeito de casos semelhantes já julgados,
entregando o que mais se espera do órgão
aplicador da lei: Justiça e segurança jurídica.
Alexy lançou três importantes perguntas a
respeito (1) onde e em que medida são
necessárias valorações, (2) como atuam
essas valorações nos argumentos qualificados com “especificamente jurídicos” e (3) se tais
valorações são passíveis de fundamentação
racional [...]
Delimitando
a gradação da racionalização (quanto mais aberta for a margem de valoração, maior será a necessidade
uma argumentação racional mais elaborada),
seu campo de atuação (onde ela é necessária) e tornando científica sua metodologia para aplicação aos argumentos
jurídicos, certamente uma longa jornada
rumo a uma aplicação do direito mais justa terá sido percorrida.
A
teoria do discurso é uma teoria procedimental da racionalidade prática. De acordo com a teoria do discurso
uma proposição prática ou normativa é
correta (ou verdadeira) se e somente se ela pode ser o resultado de um discurso prático racional.
As
condições da racionalidade discursiva
podem ser explicitadas através de um sistema
de princípios, regras e formas do discurso prático geral.
Esse sistema
compreende regras que exigem não-contradição, clareza de linguagem, certeza das
suposições empíricas e sinceridade, bem
como regras e formas que dizem respeito a consequências, ponderações,
universalizabilidade e à gênese de convicções normativas.
O
núcleo procedimental consiste em regras que garantem liberdade e igualdade no discurso,
através da concessão a todos do direito
de participar no discurso e de questionar
e defender qualquer afirmação. (grifo nosso)
A
reflexão acima de Alexy encontrará aplicação concreta quando adiante analisarmos, os processos perante o
Tribunal do Júri, onde há limitação
argumentativa de determinadas matérias impostas pela lei e pela jurisprudência.
Já a
tese da adição faz o raciocínio em sentido inverso à tese da secundariedade. A fundamentação inicia-se
jurídica, no entanto, em determinados casos
a limitação impõe que a argumentação jurídica vá só até determinado ponto, posto que “já não são possíveis outros
argumentos especificamente jurídicos.”
Daí para frente entra em cena a argumentação
prática geral.
Como
terceira via, que é a adotada na teoria da argumentação jurídica e Robert Alexy, propõe o autor a tese da
integração, onde “o uso de argumentos especificamente
jurídicos devem unir-se, em todos os níveis, aos argumentos práticos gerais.
A
interpretação da teoria do discurso da racionalidade jurídica encontra sua expressão mais clara na tese do
caso especial. A tese de que o discurso
jurídico é um caso especial do discurso prático geral tem sido aceita por
alguns e criticada veementemente por outros
Em
síntese, entende o doutrinador que o discurso jurídico possui caracteres diferenciadores do discurso prático geral
porque aquele tem limites que este não possui,
qual seja: o respeito à lei, a consideração obrigatória dos precedentes, enquadramento na dogmática e, em alguns casos,
as limitações das regras processuais.
Para
Alexy a dogmática jurídica é uma disciplina pluridimensional, pois compreende a descrição do direito vigente
(dimensão empírico-descritiva), a sua análise
sistemática e conceitual (dimensão analítico-lógica) e a elaboração de propostas para a solução de casos
jurídico-problemáticos (dimensão prático normativa).
No
entanto, sustenta que as três dimensões são muito interligadas, pois para se descrever o direito vigente,
pressupõe-se o conhecimento desse mesmo direito
ou pelo menos uma conceituação elementar para se saber que pode ser considerado direito.
Para
objetivar mais a conceituação de dogmática jurídica, traçando condições que este conceito deve seguir, Alexy
propõe que como os argumentos jurídicos
devem estar apoiados na dogmática, propõe o autor que por dogmática seja conveniente se entender um conjunto de
enunciados e não de atividades.
Por outro lado, estes mesmos enunciados não podem
estar soltos, mas sim relacionados com a
legislação e a jurisprudência. Não que naquele caso a dogmática se restringisse à compilação de leis e neste, no
apanhado de precedentes, mas os tribunais,
valendo-se dos enunciados dogmáticos, acabam por retroalimentar a própria dogmática, inovando sempre que
possível, desde que respeitadas algumas regras.
Em
outra senda, Alexy considera que existam critérios pressupostos pela dogmática jurídica, como o da não
contradição dos enunciados dogmáticos com as normas vigentes (critério negativo).
Há
também critérios positivos, os quais rezam que pode ser apresentado em favor de
determinado enunciado argumentos apoiados
em outras normas jurídicas ou até mesmo em enunciados já reconhecidos como dogmáticos, e que tal enunciado de
referência seja formulado em linguagem jurídica
(critério adicional).
Por
fim, a categoria de enunciados dogmáticos formada pelas descrições e
caracterizações de estados de coisas trabalham em conjunto com as categorias das formulações dos princípios.
Isto ocorre porque os princípios que são conceituados por Alexy como
“enunciados normativos de um alto nível de generalidade que, normalmente, não podem ser
aplicados sem agregar premissas normativas
adicionais e, muitas vezes, experimentam limitações por meio de outros princípios” – precisam das descrições dos
estados de coisas a fim de o aplicador da
norma saber o campo de atuação dela.”
Após
traçar esta classificação geral dos enunciados da dogmática jurídica, Alexy propõe o estudo e análise da
teoria da dogmática em partes: o uso dos
enunciados dogmáticos; a fundamentação e comprovação de enunciados dogmáticos; as funções da dogmática.
Quanto
ao uso dos enunciados dogmáticos, se o enunciado a ser fundamentado precisar de outros enunciados
dogmáticos para fundamentá-lo, cuida se então da chamada fundamentação
dogmática pura.
Por
outro lado, se é necessário o uso de
argumentos práticos gerais ou até mesmo normas jurídicas positivadas, daí teremos a fundamentação
dogmática impura.
Quanto
à fundamentação dos enunciados dogmáticos, Alexy propõe que eles não podem se fundar apenas em normas
jurídicas ou em enunciados empíricos. A
primeira hipótese não se sustentaria porquê de nada valeriam os enunciados dogmáticos para fundamentar uma
argumentação sobre conteúdo que exceder
ao da norma que o sustenta.
Já na
segunda hipótese (de fundamentação apenas
por enunciados empíricos), os enunciados dogmáticos não teriam conteúdo
normativo.
Concluiu
Alexy dizendo que: “Isso não significa que na fundamentação de enunciados dogmáticos não sirvam para nada as
normas vigentes e os fatos, ao contrário.
Mas prova que nem umas nem outros são por si só suficientes.”
Importante
ressaltar também que Alexy permite o uso de enunciados dogmáticos para
fundamentar novos enunciados dogmáticos. No entanto, como esses enunciados-base também são
fundamentados, em determinado momento os enunciados dogmáticos terminam e serão
necessários outros argumentos.
Como
os enunciados dogmáticos têm conteúdo
normativo, estes outros argumentos só podem ser argumentos práticos de tipo geral.
Para
finalizar a tratativa sobre a dogmática jurídica, a análise de suas funções faz-se muito importante. Na teoria da
argumentação jurídica de Alexy, a primeira
das funções da dogmática é a estabilização.
Explica
o autor que se tivéssemos que rediscutir
todos os casos novamente, mesmo que respeitando as regras do discurso, resultados diferentes
seriam alcançados para as mesmas situações
prática, e isto não é condizente com o princípio da universalidade. Desta
forma, pode-se estabelecer, por certo tempo, determinadas formas de decisão.
É
possível, portanto, adotar nas fundamentações dogmáticas enunciados já estabelecidos e assentes no meio
jurídico sem a necessidade de nova comprovação.
Um bom
exemplo de enunciado dogmático é o que reza que a ninguém é dado beneficiar-se pela própria
torpeza. Ao invocar este postulado em determinada
argumentação jurídica, o falante não precisará tecer longa fundamentação com inúmeros julgados, doutrina
de autores de peso para provar algo tão
pacífico no direito.
Bastará
mencionar o enunciado dogmático e a outra parte, caso tenha alguma razão especial para
tanto, que terá que refutá-lo. Quem invocá-lo,
portanto, estará desobrigado de comprová-lo.
O
discurso jurídico racional, como vimos, deve, dentre outros aspectos, respeitar os procedentes.
Para
Alexy, a grande função dos procedentes é assegurar a aplicação do princípio da universalidade (e
não da igualdade ou isonomia, como comumente
chamamos no Brasil).
A importância dos precedentes, com maior grau nos ordenamentos jurídicos onde
prepondera o common law, mas que também possuem grande relevância nos de civil law,
temos o seguinte:
No
sistema de precedentes da Common Law, a norma expressa em determinada decisão judicial (holding)
e sua motivação central (ratio decidendi)
têm caráter vinculante (binding) e aplicam-se aos casos futuros, chamando-se essa obrigatoriedade de
stare decisis, dela excluídas, apenas,
as notas incidentais e acessórias (obter dictum) registradas na fundamentação (opinion).
É
importante esclarecer que, se a decisão
do caso particular vincula as partes, não é esse resultado da demanda, propriamente, que forma
o precedente.
Este se compõe de razões jurídicas consistentes em
proposições de direito, doutrinas
aplicadas e fatos até mesmo doutrinas abstratas lançadas na fundamentação, formando os
princípios substanciais que dão corpo ao
elemento autoritativo.
Assim,
as decisões das controvérsias devem
basear-se em princípios de direito já seguidos em casos anteriores e as interpretações das
leis (statutes) irradiam se pelo sistema jurídico e afetam sua
compreensão com um todo, instituindo um
sistema de regras e princípios amalgamados.
A
princípio, sendo iguais as circunstâncias relevantes entres os casos, a regra é a aplicação do precedente à hipótese
concreta. Ocorre que, mesmo considerando-se
iguais as características mais importantes dos casos, pode acontecer de a valoração de uma ou mais dessas
características tenha mudado.
Portanto,
em respeito à pretensão de correção que o Direito sempre almeja, em tal contexto será natural (e exigível) uma tomada
de decisão diversa do que fora estabelecido
pelo paradigma.
A esse
respeito, Alexy informa que: “Condição
geral é que a argumentação seja justificável. Nesta situação surge como questão de princípio a
exigência do respeito aos precedentes,
admitindo afastar-se deles, mas cabendo em tal caso a carga da argumentação a quem queira se
afastar”.
É o
que Perelman chama de princípio da inércia, onde o respeito aos precedentes é fundado no que comumente se
espera de uma sociedade minimamente
estável. Vejamos:
O mais
das vezes, entretanto, o orador só pode contar, para suas presunções, com a inércia psíquica e social,
que, nas consciências e nas sociedades,
corresponde à inércia na física. (...)
De
fato, a inércia permite contar com o normal, o habitual, o real, o atual e valorizá-lo, quer se trate de uma
situação existente, de uma opinião
admitida ou de um estado de desenvolvimento contínuo e regular. A mudança, em compensação, deve ser
justificada; uma
A decisão,
uma vez tomada, só deve ser alterada por razões suficientes.
Embora
o respeito aos precedentes seja uma das máximas da teoria de Perelman e de Alexy, ambos os autores
concordam que se deve dar margem às mudanças,
principalmente quando fundadas em necessidade de aprimoramento do direito, mas sempre justificadas. Ainda a
respeito do princípio da inércia de Perelman:
O
princípio da inércia de Perelman possui uma importância considerável. Quando um falante afirma algo,
seus parceiros de ;discussão têm, de
acordo com (2), o direito de exigir uma fundamentação.
Um
enunciado ou uma norma contrária que é pressuposta
na comunidade dos falantes como verdadeira ou válida, mas que não é expressamente afirmada ou
discutida pode, de acordo com esse
princípio, ser questionada somente através da indicação de uma razão.
Essa
justificação implica numa carga de argumentação (que é uma das regras do discurso jurídico) sobre aquele que
pretende expor a exceção, o diferente, tal
como se fosse uma espécie de ônus argumentativo.
Adiante,
Alexy resume as regras gerais do uso dos precedentes:
Quando
se puder citar um precedente a favor ou contra uma decisão, deve-se fazê-lo.
Quem
quiser se afastar de um precedente, assume a carga da argumentação.
Sobre
tal tema, o art. 489, parágrafo primeiro, inciso VI, do Código de Processo Civil, disciplina que: Não se considera fundamentada qualquer decisão
judicial, seja ela interlocutória,
sentença ou acórdão, que:
VI -
deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar
a existência de distinção no caso em
julgamento ou a superação do entendimento82.
No
caso, as locuções do texto da lei “distinção” e “superação do entendimento” remetem, respectivamente, aos
institutos do distinguishing e overruling.
Considerando
que a aplicação dos precedentes é uma das regras para racionalizar a argumentação jurídica, dela não
pode fugir o aplicador da norma, seja para
aplicar o precedente, seja para afastá-lo, em qualquer dos casos justificadamente.
Com
isso, abre-se a vertente de discussão sobre o que deve ser considerado como norma diante de determinado
precedente, pois “O Direito do precedente
é também um Direito de normas”. Com isso, muito se produziu a respeito da distinção entre ratio decidendi e obiter
dictum.
No
entanto, Alexy praticamente ignora essa distinção pretendia e foca na possibilidade de aplicação do
distinguishing e do overruling, sempre de maneira fundamentada. Desta maneira, o princípio da
universalidade e a regra da carga da argumentação
se encarregam de dar a conotação racional ao uso dos precedentes.
Observa-se
que Alexy buscou o não engessamento do Direito ou do aplicador da norma quando deixa um espaço para
a busca do correto (pretensão de correção),
mas sem esquecer que essa investigação não pode ser a qualquer preço,
tem
que respeitar as balizas acima indicadas (respeito à lei, aos precedentes e à dogmática jurídica).
Uma
teoria procedimental da racionalidade
prática, vamos então aos exemplos: em relação à possibilidade, em casos especiais, de uma decisão que contrarie
a literalidade da norma, com o forte apelo
às teorias que defendem o ativismo judicial mais abrangente, temos como v.g., as recentes decisões do Superior Tribunal de
Justiça – STJ, acerca da inviolabilidade
do domicílio, mormente nos crimes de tráfico de drogas, ao exigir requisitos onde nem a Constituição da
República Federativa do Brasil – CRFB/1988 e tampouco o Código de Processo Penal – CPP o
fazem, para que se dê validade às prisões
em flagrante quando encontrada droga no interior da residência do acusado.
Vamos
ao julgado:
Excerto
do Habeas Corpus nº 611.918-SP – STJ: No presente caso, nota-se que, apesar de ter sido encontrado com
o paciente um pino de cocaína, não foram
realizadas investigações prévias, nem foram indicados elementos concretos que confirmassem
ocorrência do crime de tráfico de drogas
dentro da residência, não sendo suficiente
o fato de ter sido encontrada droga com o paciente, sendo ilícita a prova obtida com a invasão de
domicílio sem a indicação de fundadas
razões.
Tomando
como ponto de partida o foco do presente trabalho, que é analisar a aplicabilidade da teoria da
argumentação de Alexy nos processos em que
o Ministério Público atua, temos um interessante problema a ser enfrentado com esse paradigma jurisprudencial, já que o
Ministério Público é titular da maioria das
ações penais.
Conforme
foi dito acima, um dos pontos que Alexy chama a atenção é justamente as limitações próprias que o
discurso jurídico tem em relação ao discurso prático geral (tese do caso especial). Na
argumentação jurídica, dentre as condições
limitadoras que a cerca, temos a “sujeição à lei, a consideração obrigatória dos precedentes, seu enquadramento
na dogmática elaborada pela Ciência do
Direito organizada institucionalmente”.
Ora, a
estrutura da argumentação jurídica dessa decisão foge às exigências da teoria de Alexy para bem
estruturar a fundamentação.
Não
foram lançados argumentos suficientes
para afastar os precedentes em sentido contrário (nem mesmo houve justificação idônea para o
afastamento dessa orientação, ferindo as
regras do overruling), bem como não houve respeito ao direito positivo
vigente (art. 5, inc. XI, da CRFB e art.
302, I, do Código de Processo Penal – CPP).
Para melhor elucidar o tema, citaremos abaixo o
texto claro da Constituição Federal brasileira vigente, um dos vários
precedentes em sentido contrário e o texto do Código de Processo Penal a respeito:
CRFB.
Art. 5º, XI: - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do
morador, salvo em caso de flagrante
delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
STJ.
Excerto do AgRg no HC 691609/SP: III - No que concerne à alegação acerca da ocorrência de violação de
domicílio, cumpre consignar que em se
tratando de crimes de natureza permanente, como é o caso do tráfico de entorpecentes,
mostra-se prescindível o mandado de busca e apreensão para que os policiais adentrem o domicílio do acusado, não
havendo que se falar em eventuais
ilegalidades relativas ao cumprimento da medida.
Vale dizer, em outras palavras, que o estado
flagrancial do delito de tráfico de
droga consubstancia uma das exceções à inviolabilidade de domicílio prevista no inciso XI do art. 5º da
Constituição, não havendo se falar,
pois, em eventual ilegalidade no fato de os policiais terem adentrado na residência do Agravante,
pois o mandado de busca e apreensão é
dispensável em tais hipóteses. (grifo nosso)
Art.
302. Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal;
Há,
portanto, uma exigência no acórdão do HC 611.918-SP (prévia investigação ou
fundada suspeita) que não foi racionalmente justificada.
Uma
porque em situações idênticas em decisões daquela mesma Corte, não se faziam
necessários esses requisitos; a duas porque nada fora explicitado a este
respeito no corpo do acórdão, algum argumento que viesse a justificar o
afastamento da tese em sentido contrário.
Ora,
se nada mudou: a legislação é a mesma, os fatos os mesmos, a definição jurídica para crimes
permanentes é a mesma, qual a razão então
para se exigir a prévia investigação ou fundada suspeita que outrora não se exigia?
Se
esta diferenciação não for racionalmente justificada, como de fato não o fora no acórdão, não encontra amparo na teoria
de Alexy, posto que não observou os
precedentes, nem mesmo a clareza das regras de Direito expostas.
Existe
expressa previsão constitucional de limitação do direito fundamental à inviolabilidade do domicílio.
Por sinal, há tanto uma limitação direta quanto indireta no mesmo texto.
Como
direitos de hierarquia constitucional, direitos fundamentais podem ser restringidos somente por normas de
hierarquia constitucional ou em virtude
delas.
Restrições
a direitos fundamentais são, portanto,
ou normas de hierarquia constitucional ou
normas infraconstitucionais, cuja criação é autorizada por normas constitucionais.
Na teoria Alexyana referente ao princípio da estabilização do direito, do
respeito aos precedentes e à lei, esta decisão
do egrégio Supremo Tribunal Federal não encontra amparo em Alexy.
Diz
ainda o julgado da ADO 26/DF que: “Por maioria e nessa extensão, julgá-la procedente, com eficácia geral e
efeito vinculante, para: (...) dar
interpretação conforme à Constituição [...]”. (grifo nosso)
A
interpretação conforme possui em regra
dois principais fundamentos mencionados na doutrina: a unidade do ordenamento jurídico e a presunção de
constitucionalidade das leis.
Ora, a
interpretação conforme é dada para
“salvar” determinados textos legais que permitem
interpretações em consonância e contrárias à constituição, orientando, evidentemente, que se mantenha o texto, mas
somente com validade nos sentidos que
não contrariem a lei maior.
Outro
ponto importante é o que se extrai da própria petição inicial que
deflagrou
a ADO 26/DF: (d) “caso transcorra o prazo fixado por
esta Suprema Corte sem que o Congresso
Nacional efetive a criminalização/punição criminal específica citada ou caso esta Corte entenda
desnecessária a fixação deste prazo,
[requer-se] sejam efetivamente tipificadas a
homofobia e a transfobia como crime(s) específico(s) por decisão desta Suprema Corte, por troca de
sujeito e atividade legislativa atípica
da Corte, ante a inércia inconstitucional do
Parlamento em fazê-lo, de sorte a dar cumprimento à ordem constitucional de punir criminalmente a
homofobia e a transfobia (...),
superando-se a exigência de legalidade estrita parlamentar”; (grifo nosso)
Embora
a decisão não se comprometa com os fundamentos da ação, não se pode ignorar o trecho acima, onde o
próprio autor da lide reconhece a atipicidade
da conduta, tanto é que requer uma forma de tipificação dos atos por “decisão desta Suprema Corte”.
Se é
preciso uma tipificação mediante decisão de Tribunal e não houve o acolhimento do pedido
nessa parte, a se permitir a validade do
argumento da inicial (pois o fato de o STF não o ter acolhido não implica necessariamente a sua invalidade), o que houve
na verdade foi uma analogia in malam
partem, por mais que se negue tal ocorrência.
Trata-se
de um típico caso de ativismo judicial. No entanto, o ativismo judicial não necessariamente é ruim ou bom
para o sistema jurídico, tudo depende da
legitimação das argumentações (também em boa parte na forma do proceder) no plano das teorias próprias do direito a tal
respeito.
Certo
é que o STF se viu pressionado a dar uma solução à inércia do Poder Legislativo e ficou preso à sua própria
jurisprudência que não admite a
Trecho
da petição inicial citada no acórdão da ADO 26/DF. Disponível
em:https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754019240
interferência
cogente naquele Poder de forma a determinar-lhe que edite uma lei criminalizando condutas objeto da ação. Neste
sentido:
Segundo
o autor, a aurora do direito moderno e do positivismo primitivo faz uma dupla exigência ao Poder
Judiciário. Estas duas exigências,
contudo, são mutuamente paradoxais. Como? Em primeiro lugar exige-se que o julgador seja
apenas a “boca da lei” e reproduza
aquilo que foi determinado pelo legislador.
Esta
exigência está embasada na crença da
completude do sistema e coage o julgador.
Em segundo lugar, contudo, proíbe-se a denegação de justiça (proibição do non liquet). Ao ter que
decidir tudo é evidente que o julgador
terá que criar direito, pois, como se sabe, é impossível que todos os tipos de caso sejam regulados
expressamente pelo legislador.
Assim,
a coação se transforma em liberdade.
No
caso específico do julgamento da ADO 26/DF, entende-se que houve violação de diversos princípios e
orientações da lógica do discurso racional, em especial o respeito aos precedentes e à
dogmática jurídica tão caros na teoria de Alexy, fazendo parecer que os ministros que
votaram a favor da ADO decidiram por critérios
outros e buscaram os argumentos lançados no acórdão para justificar convicções não passíveis de serem expostas
formalmente no julgamento, justamente
por ser um caso extremamente difícil, pois o indeferimento do pedido aumentaria o período de vácuo legislativo
acerca da proteção dos interesses envolvidos.
Toda a
valoração exposta pelo STF quanto à necessidade de maior proteção jurídica às minorias homossexuais ou
transexuais, o histórico de discriminação
no Brasil, o atraso do Congresso Nacional etc., tudo isso são valorações que foram exploradas de forma
equivocada, pois a tal respeito nunca houve
dissonância, o que fere uma das regras da argumentação jurídica racional que é problematizar algo que não é objeto de
discussão, bem como usar uma pseudo
função contramajoritária onde na verdade não há. É dito na decisão:
“Muito
mais importante, no entanto, do que atitudes preconceituosas e discriminatórias, tão lesivas quão
atentatórias aos direitos e liberdades
fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de suas convicções, orientação sexual e
percepção em torno de sua identidade de
gênero, é a função contramajoritária do Supremo
Tribunal Federal, a quem incumbe fazer prevalecer, sempre, no exercício irrenunciável da jurisdição
constitucional, a autoridade e a supremacia
da Constituição e das leis da República”. (grifo nosso)
Há uma
atecnia argumentativa no citado texto, uma vez que decidir a favor do direito de determinada minoria nem
sempre é uma posição contramajoritária,
pois é perfeitamente possível que a maioria concorde com o sentido do julgamento.
Estar
de acordo acerca de um valor é admitir que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as
disposições à ação uma influência
determinada, que se pode alegar numa argumentação, sem se considerar, porém, que esse ponto de
vista se impõe a todos.
(...)
Recorre-se a eles para motivar o ouvinte a fazer certas escolhas em vez de outras e, sobretudo, para
justificar estas, de modo que se tornem
aceitáveis e aprovadas por outrem.
De tal
forma, entende-se que decidir a favor de maior proteção a homossexuais e transexuais, reconhecer que
sofrem discriminações e que precisam de
maior proteção do Estado não é contramajoritário, pois é de se supor que ao menos a maioria das pessoas concorde que
ninguém deve sofrer discriminações, seja
lá por qual motivo for, muito menos agressões físicas ou à sua honra por conta de seu sexo, o que é muito diferente de
concordar com práticas homossexuais ou não.
O STF
assentou uma possível discordância da maioria das pessoas como fundamento de sua posição contramajoritária,
quando na verdade o mais provável é que
haja consenso acerca da proteção aos interesses dessas pessoas.
Ao
tratar dos fatos e verdades, que são espécies de acordos na visão de Perelman, o autor relata que :Os fatos são
subtraídos, pelo menos provisoriamente, à argumentação, o que significa que a
intensidade de adesão não tem de ser
aumentada, nem de ser generalizada, e que essa adesão não tem nenhuma necessidade de justificação.
A
adesão ao fato não será, para o
indivíduo, senão uma reação subjetiva a algo que se impõe a todos.
Os
principais pontos da investigação que permitiram a sustentar essa conclusão é que a subjetividade sem controle
gera abusos, tanto na própria atuação do
Ministério Público como autor de ações judiciais (cíveis e criminais, com instauração de procedimentos investigatórios
etc.), como no controle das decisões judiciais
nos feitos em que atua. Logo, quanto maior a racionalidade na aplicação do direito, que é um dos focos da teoria de
Alexy, menor será o espaço para subjetivismo.
A
necessidade de busca do ideal de correção do Ministério Público, conforme levantado no tópico específico a este
respeito, é importante para que o órgão
caminhe passo a passo com a evolução do direito e não cometa equívocos por não acompanhar a pretensão de correção que
o direito sempre busca.
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